Thursday, November 15, 2007

E agora um conto que não resisto a trasncrever

Mataram o Rato! Mataram o Rato!
O alarme correu rua acima rua abaixo, e alastrou como nódoa invadindo a praça, penetrando nos becos, manchando o ambiente como água suja e pestilenta.
O crime era estranho à terra, e a terra era estranha ao crime, aliás era estranha morte de homem numa povoação que há décadas vivia em paz tirando aquele pequeno furto de lenha de quem a não tem, e tem frio no rigoroso Inverno da Beira Alta; pobreza antiga.
Altercações ou desavenças eram limitadas por fortes laços de parentesco natural numa restrita comunidade de muitos primos e primas, ou pela diplomacia e autoridade dos homens bons. A paz era norma e o trabalho rural muito dependente de relações serenas e solidárias como eram nas safra da arranca da batata e da ceifa ou malhada do centeio, momentos de forte sentido comunitário, mas sempre presente como por exemplo no grande rebanho onde todos tinham algumas cabeças.
O crime era uma mancha para a terra e para o seu prestígio na região.
Mataram um homem em Lorendo! Era o que iria correr por esses povos e no entanto aqui não havia assassinos.
O Rato morto livra a terra de má rés, mas de momento é um alvoroço uma ferida aberta que é preciso desinfectar e sarar, uma expectativa e uma inquietação. O Rato era de fora, lá das bandas de Tabuaço caminho do Doiro, terras quentes, veio parar aqui porque o trabalho em tirando as vindimas escasseia na zona, mas não é ente querido, é só tolerado. Cultivava uma quinta, uns palmos de terra caminho da Serra, longe dos olhares das gentes, dos prados e lameiro, dos campos mais férteis, e mais cerca do povoado, envolvido por duas ribeiras que lhe davam água.
O povo sabe quem o matou, mas cala. Dizem que voz do povo é voz de Deus, por tal é grande responsabilidade falar.
De sussurros no entanto é possível perceber que foram os Carneiros que o mataram. Gente bravia quezilenta também de fora, mas vizinha do Rato em leiras e lameiros.
Algumas pegas, por via da água, por via dos marcos e por outras vias, eram já conhecidas entre o Rato e o Carneiro, bichos de mato que os envolvia, e às terras bravias, embora cultivadas, prontas a regressar à sua natureza como eles.
O Manel Rato e o Zé Carneiro eram permanentes lá nessas bandas da Serra. Os irmãos e os filhos, eram vagabundos, andavam pelos mundos a fazer da vida o que só Deus sabe e nós presumimos. Mulheres se as tinham era lá para o Douro, a sobreviver sabe-se lá como.
Rato e Carneiro todos os domingos desciam ao povo de camisa lavada, chapéu de feltro, pela manhã ainda sobre a sobre a testa, à tarde se veria, mas no calor da discussão regada a tinto, é provável que venha ser sacudido para a nuca, a limpar a testa e as ideias da sombra da aba, aguçar o espírito e intimidar o parceiro da discussão, que em sendo o Carneiro ou outro da laia e de chapéu, responde com trunfo igual.
Antes da missa já os dois passaram na venda do Abel, a provar o vinho, já baptizado para baixar o grau e aumentar os proventos dum Abel já rico mas insaciável.
As badaladas da torre não deixam passar de aperitivo dois copitos miúdos e, constritos no temor a Deus obedecem à chamada do repicar do sino no terceiro e último aviso aos crentes hesitantes ou tardios.
A comunhão destes vizinhos nas leiras na fé e à tarde de novo no Abel parece enterrar as tais pegas velhas sabidas do povo, que até já acudiu um certo domingo segurando o punho à navalha do Rato que brilhou na rua à porta do Abel. Lá dentro só brilham os copos e mal, que o Abel não deixa.
“In vino veritas”
Passadas quezílias não os impediam de se embebedarem mutuamente, apesar do baptismo do vinho e da bênção da missa, que os não livrava de visitar ainda mais uma “capelinha” no Outeiro, já de caminho para a Serra, e no lado oposto à verdadeira, a do Senhor dos Passos, trocados por Cristo ao peso da cruz, trocados por eles ao peso do vinho.
E assim arrastavam-se pelo Outeiro com a noite a cair, sumiam-se no escuro do caminho, e ouviam-se no silêncio da noite em conversa de bêbados, que só se extinguia na distância por alturas da curva da capela de S. Vicente já abrigada no pinhal.
No entanto amanhã se for preciso vão vê-los na feira ainda bem cedo, a comprar cebolo, a mercar um reco, ou a marralhar o preço de umas botas de carneira. Lá para o meio dia já estão abancados na tenda da marrã, onde bancos corridos e mesa partilhada abrigam lavradores, que findados os negócios, se merecem um copo de celebração, um caldo do pote e a marrã do porco ainda hoje vivo se não fora a feira.
O Rato e o Carneiro deixavam a vila ao entardecer, não sem antes se imiscuírem em zaragatas, ou delas por vezes autores, actos que indicavam estar-se em fim de feira ditada pela Guarda já habituada a estes fins de festa frequentes.
Estes figurões não mais eram vistos o resto da semana, entregues que estavam ao amanho das terras ou a vigiar as cabras lá nas faldas da Serra, onde estavam melhor, bem, mais perto dos lobos que dos homens.
O Loredo ficava mais descansado sabendo essa gente de má índole ao largo, e evitava relações muito íntimas com tais almas danadas, mantendo as inevitáveis, e respeitando-os só e apenas.
No entanto o povo era unido, capaz de empunhar um estadulho, ou mesmo a sopapo de alguns valentes, que os havia na terra, meter na linha ou impontar para fora de portas algum arruaceiro estranho ou atrevido.
O Rato o Carneiro, e os seus irmãos e filhos, embora gente bravia e de má pinta, sabiam-no, e por tal, respeitavam esta gente o bastante para não despertar a ira do povo. E não foi preciso.
Um domingo de Verão, o Carneiro lá vinha dos lados da Serra como de costume vestido como o Senhor merece no seu dia, e com ele aperaltado com um fato inteiro, chapéu redondo de abas levantadas e um cravo ao peito, vinha um dos seus filhos, visto cá na terra uma ou outra vez, mas sempre farsola e fanfarrão na fala.
Ambos como em via-sacra visitaram a venda seguiram para a missa e cumprindo o ritual domingueiro comeram na tasca, com o pão da Lapa, sardinhas de escabeche, umas pataniscas e queijo de cabra, tudo bem regado com sucessivos copos, que foram entornando pela tarde afora e a noite adentro. Um dia normal, se não fora a ausência do Rato, que disseram eles, ter ido a Tabuaço a ver do filho preso. Nada estranho o caso para quem sabia dos feitos e lides desta baixa linhagem.
Veio a segunda feira e a labuta diária de quem lavra a terra. O Carrolas embalado na chiadeira do carro dos seus bois descia da Serra, mais o Pintado, cão fiel como os bois mas ladino, fazendo a batida do terreno á frente e atrás, atrás e á frente, numa dobadoira constante de que resultava por vezes um restolhar de coelho erguido da cama em fuga, ou um esvoaçar de perdizes assustadas.
A certo ponto o Pintado de orelhas espetadas estacou num giestal e ladrou frenético rodando o ronho de silvas e giestas. Correu ao caminho, ladrou frente aos bois, ladrou ao Carrolas, e voltou ao brenho farejando à volta, e erguendo o focinho em jeito de lobo, soltava latidos modelados de uivo. A mórbida insistência do rafeiro não demovia o Carrolas do percurso sonolento, pachorrento mas contínuo como o correr da areia na ampulheta. Tinha espírito de lavrador e era carreiro. Se ia perder-se atrás de coelhos, perdizes, raposas ou javalis, melhor fora deixar os bois e trazer a caçadeira. Mas não era essa a sua queda, e o trabuco do pai que ainda andava lá pela pilheira havia de estar já bem comido da ferrugem.
Assim, queria que o Pintado se deixa-se de veleidades venatórias
e acatasse a ordem de chamada. Quando muito diria ao Germaninho para dar uma batida aqui pela Urgueira, que ele agradecia o informe, e mais nada podia fazer para não parar a carreira aos bois; que ainda queria botar o mato na loja da Josefa, a vizinha viúva, sem homem que lhe fizesse o serviço; e sorriu com este pensamento.
Mas o mafarrico do cão estava possesso, e viu-se forçado a brandir a aguilhada e a bradar um fundo “tchôô” que lá accionou o Malhado e o Negro para uma travagem lenta e a contra gosto, pois o fresco da loja e o do feno já lhes chegavam às narinas, vindos do instinto, só pode, nestes animais de carreira mas sem GPS[1].
O mato era alto e denso, um brenho de giestas e silvas bravas abrigo de bicho e abrigo da vista, onde não penetra a do Carrolas sem com a aguilhada fustigar os arbustos a tentar abrir óculo de luz que chegue à razão deste desespero do fiel.
Já suava quando num último golpe, pôs à vista a máscara de um espantalho sangrento esparramado no fundeiro.
A tétrica visão foi equivalente a um choque eléctrico de alta voltagem, que o fez tremer como uma vara verde num quase estertor. Passado o choque intenso, paralisante, o Carrolas, arrelampado ainda, reagiu em fuga pelo caminho pedregoso largando a aguilhada, os bois, e o cão, que o não largou a ele, e aos bordos correu perseguido pela visão macabra, e o cão fiel na ânsia de aliviar esta carga mental mais pesada que a dos bois.
Já perto da Várzea enxergou o moleiro entre o milho a cortar as bandeiras para o gado, enquanto o moinho lhe fazia o trabalho levada a água da ribeira pelo rego de desvio de encontro às pás que o moviam e prosseguindo de regresso ao seu curso natural, enquanto o moleiro colhia as bandeiras ao milho. Absorto na tarefa o moleiro só levantou a cabeça para o caminho do pinhal quando ouviu gritos alarmantes.
-- Acudam! Acudam! A morte está aí. E apontava ao largo feito tresloucado.
O moleiro largou a tarefa e acorreu ao caminho, na senda do Carrolas que ia prosseguindo em direito ao povo.
No largo do Outeiro já se via gente e pelo caminho já corria o Armindo, o Minhoto, o Careca, e o Panal, os valentes da terra.
Em breve o povo estava alvoraçado pelo brado:
- Mataram o Rato! Mataram o Rato!
As mulheres carpiam o drama, de falares excitados, de gestos também, lançavam boatos, inventavam razões, corriam a canalha do assunto de adultos, invocavam Deus para lhes acudir e batiam nas ancas numa aflição.
Aos poucos o discernimento dos mais ponderados foi ganhando campo acalmando o povo e na pessoa do seu regedor, tomava medidas. Já os cabos de ordem estavam presentes largada a sachola e interrompida a rega, empunhavam o símbolo que era a caçadeira de uma autoridade sem crachá nem farda. O Senhor Horácio foi sargento em África, sabe comandar. Deu ordem aos cabos para irem guardar o local do crime e para não deixar que ninguém se chegue.
O Senhor Horácio queria bem guardado o corpo do Rato, temia a família bem capaz de tudo. Receava ainda pela vida do Carneiro. Não se sabia se havia Ratos por perto. Eles não se iriam ficar e outro crime na terra ou desacatos graves tinha de evitar. Montou a bicicleta e pedalou para a Vila a participar a ocorrência do crime.
Um cabo da guarda mais dois praças foram enviados pelo tenente para Loredo, e o regedor acompanhou-os no jeep. Os guardas renderam os cabos de ordem e o regedor e cabo foram para taberna para de volta de um copo analisar o caso.
Havia que aguardar pela chegada do Delegado de Saúde, e do Delegado do Ministério Público.
O tenente Santos já esta hora estaria de volta dos Doutores, fáceis de encontrar no Alberto, o café da Vila, e o seu centro da inteligência, médica, forense, burocrática, política e até mundana de boa e má língua.
O médico foi o primeiro a chegar no seu carro particular um soberbo Dodge de brilhantes cromados, a esfumar a memória do Doutor Aníbal no seu Rocinante. Como os tempos mudam e não só os Doutores!
Pensam os velhote ao Sol do Eirado. Chega depois um carro de praça com o Delegado e os funcionários lá do tribunal, escrivão e chefe da secretaria e ainda o Luís filho do alfaiate que é cá da terra e é aprendiz das coisas da lei, e tão bem falante e de tal porte, que passa por vezes por Doutor também.
De farda lustrosa bota alta e pengalim, o jovem tenente do posto da Vila na moto do Posto, vem fazer figura surgindo imponente no centro da praça a jorrar ruído de alta cilindrada.
Está entregue o poder e a autoridade a quem é devido. O povo deve recolher, deve dispersar e vai-o fazendo mas bem lentamente para saborear todo o aparato, para tirar proveito de folga forçada, para amanhã não jurar em falso, ou para ter matéria para conversar nos dias seguintes.
Verificado o óbito o corpo foi levantado e depositado na capela de Santo António junto à Igreja Matriz, bem no meio da terra.
Mas o povo começou a murmurar. Um herege um ateu um diabo na capela de Santo António, ali no meio da povoação, não caía bem nas almas dos crentes nem dos outros.
A negra cortina da noite cobria agora a aldeia e abafava os seus gritos lamentos e injúrias erguidos a um céu azul divino e justiceiro da tarde do drama. O frio do sereno arrefecia a excitação do dia e o silencio ganhava profundidade.
À porta da capela de Santo António um GNR consumia periscas e tempo de serviço, enquanto guardava o defunto que ninguém velava. Só o Calceteiro e coveiro também, mirrado e entornado, prestava solicito as honras da casa;
- Senhor Guarda para aqui, Senhor Guarda, para ali e contava seus feitos do tempo da tropa.
Entretanto um conclave restrito, e não conformado com a permanência do Rato morto mas empestante no meio da santa terra, tomava a decisão clandestina de o transferir para a capela de São Vicente, desterrada no pinhal, arruinada e solitária.
Surgira o boato, não certo que o fosse, que os parentes do defunto estavam já na Vila e tinham tensão de resgatar o morto.
Era meia-noite quando o féretro fúnebre se organizou; burlou a vigília, que ficou à porta sem corpo de delito, saiu por outra oculta, e aos ombros de quatro valentes anónimos, mais um o mestre secreto, sem padre nem cruz nem caldeirinha encetou o féretro sem haver luar.
Só o condutor de um automóvel no troço da estrada atravessado pelo féretro, foi testemunha apavorada e única do cortejo negro carregando a urna brilhando de súbito ao foco dos faróis. Acelerou de medo e não fez a curva. As testemunhas sumiram no caminho do diabo a missão negra.
O corpo do Rato apareceu entre as ruínas e silvas da capela de S. Vicente, o guarda foi punido, e colocado lá para o Alentejo. Mas o povo não acredita, que a pena foi merecida.
Quem pode guardar Satanás?
A capela de S. Vicente já não existe, há muito arrasada, mas o sítio não, e o povo ergueu-a na mente aí de novo e consagrou-a como o lugar da Capela do Diabo, onde dizem que a quem passa os cabelos se arrepiam.
[1] _ Aparelho que mede percursos e distâncias

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