Sunday, February 27, 2011


E agora um poema que não é meu, mas que faz chorar até às lágrimas.
É de António Nobre, um poeta que passava as férias de Verão na aldeia em que nasci e que se chama S. Cosmado.


MEMÓRIA

À Minha Mãe
Ao meu Pai

Aquele que partiu no brigue Boa Nova
E na barca Oliveira, anos depois, voltou;
Aquele santo (que é velhinho e já corcova)
Uma vez, uma vez, linda menina amou:


Tempos depois, por uma certa lua nova,
Nasci eu… O velhinho ainda cá ficou,
Mas ela disse: - «Vou, ali adiante, à Cova,
António, e volto já…» - e ainda não voltou!


António é vosso. Tomai lá a vossa obra!
«Só» é o poeta-nato, o lua, o santo, a cobra!
Trouxe-o dum ventre: não fiz mais do que o escrever…


Lede-o e vereis surgir do poente havidas mágoas,
Como quem vê o Sol sumir-se, pelas águas,
E sobe os alcantis para o tornar a ver!

(António Nobre)


Quando nasci comecei a perder tempo (acho eu!)



Versejar é perder tempo quando não há tempo a perder.

Por exemplo

Ainda agora me atrasei

E falhei
Irremediavelmente e para meu mal

A primeira notícia do telejornal.

Tudo porque estava ingenuamente

Sobre estes versos a preguiçar

Antes estivesse a dormir.

Sim a dormir o tempo não se perde

Nem se perde, por exemplo, o autocarro.

Quando se dorme dorme-se e pronto.

Dormir é uma condição da vida

E pelo menos sonha-se, o que não é mau,

Principalmente quando se sonha com coisas boas.

Agora versejar?

É dormir acordado

E arriscamo-nos todos, neste caso

A dar azo

A que nos digam: - Estás a dormir, ou quê?

Olha que o jantar arrefece.

Não se pode responder a quem tem os pés bem assentes na terra

A quem nos diz que perdemos o telejornal e o autocarro e que a comida arrefece

Porque estávamos a perder tempo a fazer versos.

Ainda se estivesses

A fazer as contas do IRS

Vá lá...

Mas versos?

Olha que também arrefece o chá

Sim também o tal que gostas tantos de tomar

Depois de jantar

Vai dormir João

Gostas mais de sonhar do que de viver.

E foi então

Que nessa ocasião

Eu e o meu cão

Adormecemos.

Ele no sofá

E eu no chão

J.Guedes

Friday, February 25, 2011



E assim me enterrei

Na neve branca com que subitamente me deparei

quando saía de casa.

Tinha cinco anos? Não sei.

Mas a verdade é que feliz de mim me lancei

Como num golpe de cartas nessa vaza

Quando era criança feliz

E se me quebrou a asa

De anjo pequenino.

Afoguei-me, ofeguei-me, cansei-me.

Que coisa instante bela irrepetível

Submergir e depois emergir no meio da neve

Leve.

Que coisa feliz!...

Vós que nasceis

noutros tempos e noutras latitudes

Nunca sabereis

o que foi afogar-me

Na leveza leve da neve

Nesse nevão de criança de mil novecentos e cinquenta e seis.

Tinha cinco anos de idade

E na verdade

Ainda hoje não me lembro bem se foi assim, ou não

Enfim!...

Mas recordo que tinha cinco anos de idade

Isso é atestada autenticidade

Nos registos da meteorologia oficial e da neve profunda

Leve

Que caía sem registos nem vistos

Como a neve

Que livre se reconhece em flocos e cai como deve

Segundo as leis da física

E onde me enterrei e me afoguei e esbracejei

E já lá vão, anos e arcanos

tempos que levamos

Sem saber se foi de facto assim, ou não

Sim! Passaram décadas e anos

Passaram tantos anos!

E assim.

Assim!...

Desses tempos, nascentes

E esmorecentes

Me deportei e departei

Afinal todos, dia a dia, de nós próprios nos zarpamos

de absortos portos.

Do que recordo ao certo já não sei.

Que aborrecimento é esta coisa de passarem os anos.

J. Guedes

Domingo 26 de Dezembro de 2010



O tio Arnaldo trata disso tudo

Como sempre tratou

As lágrimas quedam-se com ele em ângulo agudo

Convergente

Por aqui estou

Presente!

Afirma sem dizer como se fosse um surdo mudo

O Tio Arnaldo quando tudo falta sempre trata de tudo.

Que heroicidade esta de meu irmão

Verter as lágrimas de todos nós

Sozinho

Sublimemente mudo

Num cadinho

De ouro

Besouro

Coerente

Sempre consciente

Sem dizer nada na vida corrente

de todos nós

Trata do que deve como as mós

Dos moinhos antigos sem se dar por elas

Rodam, rodam e alimentam

De farinha bocas que não sabem que têm fome

E a família vive

E a família come

E o mundo gira.

Incoerente informe

E acorda e dorme.

Foram-se os pais, os tios e os avós.

Falta alguém?

Faltamos todos nós

Esmorecem as velas

Mas o Tio Arnaldo não.

Do trabalho obreiro

Pega com uma mão

Uma agonia

E com a outra uma exactidão

Do dia a dia

Sobre todos os chorados mortos temos que sobreviver

A vida é assim que se há-de fazer?

14 Janeiro 2011-01-14

J. Guedes

Pequena variação sobre o poema anterior


O Meu cão realista


Dizem que os cães vêm e pressentem

Serão animais místicos esses cães inventados pela literatura?

O meu não vê nem pressente nada.

Acorda, de madrugada

Brinca cheira, ladra

Abana a cauda

Durante o dia, enquanto o dia dura

E, sem dizer nada

(mal educado, pode dizer-se) pelos padrões do dono

enrosca-se em sono

Bem profundo sono, mal termina

E finda

A ultima jornada.

E fica no abandono

Do seu palácio sofá da sala de jantar

Pronto para acordar

Feliz no dia seguinte.

Às vezes cedendo, eu, ao que se diz

Ser dos cães presciência

Em intervalo de serão

Entre a leitura de um livro e olhadela de soslaio à televisão

E do mundo real em momentânea ausência,

Falo com ele sobre filosofia.

Mas ele abre os grandes olhos pestanudos

Fixa-me e responde que prefere os filósofos mudos

E deixa-se de novo dormir.

Pelo que vejo, quotidianamente,

(ou seja de quando em vez)

O meu cão não vê nem pressente.

Limita-se, a ser ele

Pessoal e com próprio nome mês atrás de mês (já lá vão anos).

Reage, naturalmente, à sede ao frio e à fome

Como qualquer ser vivo

O meu cão

Que encaro sempre como o último dos “moicanos”

Que dorme junto à minha mão

No sofá.

Que não sente nem pressente

Mas àh...!...

Quando um ruído o desperta

Aí vai ele à descoberta

Levanta-se grave

Estica as patas.

Eu, expectante (nessas alturas), olho-o de soslaio

Entendeu alguma manifestação

metafísica de ocasião

Que me escapou?

Terá a doença da velhice e ter-lhe-há dado algum final desmaio?

Não!

Para o meu cão

Não há metafísica, nem sentimentos tolos como depressão

Saudade, ou mágoa

O meu cão

levantou-se,

Espreguiçou-se,

Esgueirou-se pela sala

E foi apenas beber água.

Que filósofo colossal

É sempre nessa repetida ocasião

O meu cão

Que não sente nem pressente

Aliás tem cataratas e já ouve mal

E mal sente

A gente

vizinha que se extravasa

Em ruídos quotidianos.

Interessa-me lá o que se passa fora de casa! (Diz ele)

Já levo tantos anos

De te guardar

Meu dono!

Já bebi a minha água

Deixa-te de imaginar

Quero regressar ao sono

É fora de horas

Vê bem.

Tudo dorme

Apaga a luz e vai dormir também.

J. Guedes

25 Janeiro 2011


Que coisa extraordinária é o meu cão.

Não faz nada.

Dorme, come e cala.

Eu não!

Ou nem sempre talvez...

Comigo é vezes sim, outras não.

Um compromisso de ocasião.

Para o meu cão

Não!

É sempre assim.

Tem sede vai beber

Tem fome

Come

Sou eu que lhe dou

A água e a ração.

E ele nem sequer agradece

A esta minha permanente disponibilidade.

Responde-me ele

(Ou eu próprio a mim).

- A vida é assim! gostas de mim!

E eu, evidentemente dele é verdade.

E é tudo.

Não me dás água e pão por caridade

Dás-me simplesmente

Sem interrogações,

Nem obrigações

Inúteis

Fico com o que queres, ou o que reste (principalmente quando não há dinheiro)

Ossos, ou migalhas, não importa. Não sou, como sabes, interesseiro.

O que interessa é que gostas de mim.

Eu de ti gosto obviamente.

Por isso tens-me por aqui sempre presente

A abanar a cauda e a ladrar sem tino

A recordar-te o tempo em que eras pequenino

Quando não pensavas, verdadeiramente, em nada.

É como se apresenta a vida para nós os dois.

Eu que sou velho e cão

Sou sempre pequenino como tu ainda és.

O Mundo para ti será sempre uma charada.

Para mim não.

Não te esgotes em especulações fúteis

Nem em quês e porquês.

O amor nasce connosco de enxurrada

Mas limpa e aclara as coisas úteis

Quando nas emoções

se intrometem razões urgentes, ou simplesmente é preciso

Estás a ver?

E principalmente as que são fundamentais para viver.

Por muito que tu penses – acrescenta o meu cão -

O Mundo é sempre justo, racional, conciso.

Deus surge inevitavelmente e sempre na ocasião

Para resolver o que é preciso.

Não te preocupes. Não és o meu patrão

És o meu dono e íntimo amigo

As dívidas que não tenho para contigo

Não tas pago sabes bem!

As que tens, com outros deixa lá que outros as pagarão.

Vai dormir. É tarde

Amanhã tens que trabalhar

Eu não

Durmo e acordo quando calha

Como compete a qualquer cão de guarda ou de vigia

Tu, meu dono, não.

Para ti a vida é umas vezes um drama outras uma elegia,

Ou apenas novo dia que se aguarda

E resguarda.

Para mim não

A vida é unicamente o momento exacto

Em que chegas a casa

E brincas comigo

Para mim não existe tempo meu amigo

Tudo se extravasa

Em amor e alegria nesse pequeno acto

De ocasião

Nesse momento de lucubração

O meu cão

Subtil se esgueira para o quarto enquanto visto o pijama

Deita-se de quatro no tapete

E eu na cama.

Encerramos nessa altura a cortina do mundo

Eu e o meu cão anónimos, felizes, caímos os dois em sono profundo.

J. Guedes

25 Janeiro 2011