Monday, April 18, 2011
Friday, April 8, 2011
Os tons da minha juventude
Na década seguinte gente nova aparecia. Os Beatles os Roling Stones, os Shadows, Tom Jones, etc. e tal.
Entretanto o que fazia “frisson” nesse Portugal antigo e fechado eram os expoentes da música francesa e italiana e uma excepção Demis Rousssos e Vangelis (na Grécia) que cantavam em inglês.
Falarei, ou melhor exporei vídeos destes e de outro mais tarde.
Por agora começo pelo ano de 1964 e por Gigliola Cinquetti a preto e branco na Tv e no Festival da Canção que ainda hoje existe.
Thursday, April 7, 2011
O NOIVADO DO SEPULCRO uma ilustração mexicana
Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.
Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.
Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.
Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.
Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:
"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tumba não cessei d'amar,
"Por que atraiçoas, desleal, mentida,
"O amor eterno que te ouvi jurar?
"Amor! engano que na campa finda,
"Que a morte despe da ilusão falaz:
"Quem d'entre os vivos se lembrara ainda
"Do pobre morto que na terra jaz?
"Abandonado neste chão repousa
"Há já três dias, e não vens aqui...
"Ai, quão pesada me tem sido a lousa
"Sobre este peito que bateu por ti!
"Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.
"Talvez que rindo dos protestos nossos,
"Gozes com outro d'infernal prazer;
"E o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra sem vingança ter!
– "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda
Responde um eco suspirando além...
– "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.
Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.
"Não, não perdeste meu amor jurado:
"Vês este peito? reina a morte aqui...
"É já sem forças, ai de mim, gelado,
"Mas inda pulsa com amor por ti.
"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
"Da sepultura, sucumbindo à dor:
"Deixei a vida... que importava o mundo,
"O mundo em trevas sem a luz do amor?
"Saudosa ao longe vês no céu a lua?
– "Oh vejo sim... recordação fatal!
– "Foi à luz dela que jurei ser tua
"Durante a vida, e na mansão final.
"Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
"Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
"Quero o repouso de teu frio leito,
"Quero-te unido para sempre a mim!"
E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrada, d'infeliz amor.
Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.
Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.
Soares de Passos
Minha mãe tinha um disco de vinil de alguém que dizia este poema. Muito antes de Vilaret e Lereno. Não sei quem o dizia e o disco desapareceu há muitas e muitas décadas antes de eu ser pequenino e depois das partilhas de família. As que costumam dividir equitativa e judicialmente o que não é nem pode ser moralmente divisível mas que de "jure" se perde por mor da lei. E que depois nunca mais materialmente se recupera. Ainda bem que a memória não deixa testamento judicial...
Soares de Passos (1826-1860) nasceu no Porto, indo estudar para Coimbra onde fundou o jornal O Novo Trovador. Nele colaboraram poetas da segunda geração romântica. Os seus poemas foram publicados em 1856 numa colectânea intitulada Poesias. Soares de Passos faleceu prematuramente, sendo, no entanto, um dos mais significativos poetas ultra-românticos portugueses. A sua composição mais conhecida é O Noivado do Sepulcro, de que os escritores realistas fizeram grande chacota.
Mas que é boníto lá isso é! Os intelectuais poderão fazer chacota, mas o ultra romantismo é que é a verdadeira poesia, a par dos antigos parnasianos e naturalmente dos líricos e dos simbolistas. O resto é prosa às vezes rimada, por vezes harmoniosa, mas apenas prosa. A poesia apenas circunscreve o ultra o resto são tentativas.
O cão . Amigo verdadeiro que tanto se presta a morder como a morrer de fome pelo dono.
O molosso fiel de antigas eras
O velho amigo da família humana
Que estrangulava os tigres e as panteras
Foi um gigante de bondade indiana.
Ele dormia em noites solitárias
Atravessado à porta das cabanas
Rondavam na floresta as alimárias;
E aos gritos lamentosos dos chacais
Estremecia o coração dos párias.
Mudos d amor, estranhos animais
Dilatavam os olhos coruscantes
Entre as fulvas vertigens tropicais
Iam beber ao rio os elefantes;
E quebravam na rústica passagem
Os troncos nus das árvores gigantes.
Sobre o cairel da hórrida voragem
Espreitador, inquieto, alucinado
Media a presa o búfalo selvagem.
E ele o molosso intrépido assombrado
Olhava a o céu profundo, esplendoroso
Cheios de um terror sagrado.
Ele forte ruivo monstruoso
E tinha vivas alegrias francas
No puro olhar azul, religioso.
Fugiam dele as grandes águias brancas;
E entravam nas cavernas os leões
Com a cauda hirsuta fustigando as ancas
Ele era o monstro bom das solidões
Tinha uma fresca genuinidade altiva
Que distingue os frescos corações
Naquela alma rude e pensativa
Serena e dócil como as pombas mansas
Havia a luz da aurora primitiva
Ele escondia as garras que eram lanças
E todo se arqueava humildemente
Sob a mão pequenina das crianças.
E os filhos do molosso inteligente
São esta raça espúria avinagrada
Que anda latindo ao calcanhar da gente!
Quando a pobreza vai subindo a escada
Logo aparecem estes cães impuros
Mostrando a boca vil, anavalhada
Remexem na esterqueira dos monturos,
Mordem os cegos tristes, indigentes,
Que vão na sombra tacteando os muros
Nem heróicos, nem castos, nem valentes
Maus e cobardes; a qualquer aceno
Fogem ganindo e vão mostrando os dentes.
Se tudo é baixo e pútrido e pequeno!
Fermenta a humanidade; em vão se eleva
Por sobre nós a cruz do Nazareno
O vil proscrito descendente de Eva
Sob o jugo do mal dobra o pescoço
E vai contente a rastejar na treva.
E ele o filho do intrépido molosso
Rasga o manto dos pobres por instinto
E lambe os pés a quem lhe atira um osso.
Tudo caiu no imundo labirinto
Desta miséria, deste egoísmo atroz;
Tudo apodrece. Magro cão faminto,
És menos torpe que qualquer de nós
Guerra Junqueiro
Monday, April 4, 2011
Moimenta elevada cidade sem descurar Leomil nem as outras localidades
No entanto, na generalidade, a decisão política de Lisboa (neste caso concreto melhor será dizer dos Açores que era onde se encontrava o Rei D.Pedro IV e o seu ministro Mouzinho) revelou-se acertada pelos tempos vindouros. Não sou especialista na matéria, mas reconheço que nesses tempos a importância das “terras” (lugares, aldeias e vilas) se começavam a transformar nitidamente. Principalmente na sequência das invasões napoleónicas que por imperativos militares levaram a novos levantamentos topográficos do país que em certo sentido corresponderam a verdadeiros sensos nacionais.
Sendo assim verificou-se que S. Cosmado tinha perdido importância face a Armamar. Resultado? S. Cosmado passou a freguesia anexa da dita vila e muito bem.
A Goujoím, sede de concelho (actualmente com menos de 30 habitantes) aconteceu o mesmo e passou para a dependência de Armamar perdendo o estatuto de vila.
Longa, de longa história, sofreu o mesmo destino e integrou-se no concelho de Tabuaço, tal como Barcos.
Granja do Tedo anteriormente muito mais comunicável com Goujoím deixou de estar nessa situação pelo desbravamento de novos caminhos, mais largos e transitáveis e naturalmente passou a pertencer a Tabuaço em vez de Armamar, ou Moimenta vilas com as quais detinha comunicações bem mais difíceis, ainda que mais próximas.
Leomil, apesar da grande extensão da sua freguesia perdeu terreno face ao explosivo desenvolvimento de Moimenta.
Lamas, perdido o Convento que constituía o centro da sua importância perdeu igualmente estatuto para Sernancelhe, mais uma vez porque Sernancelhe aumentava em dimensões demográficas e Lamas definhava com a perda de importância do referido convento.
A Lapa , por seu turno perdeu importância (ainda que muito posteriormente) pelo simples facto de a estrada (já do século XX) de ligação a Vila Nova de Paiva e Viseu ter sido traçada ao lado e bem ao lado alcandorando Alhais a uma dimensão inesperada de aldeia de passagem, quando por Alhais antes ninguém passava a não ser que o seu objectivo fosse ir lá, ou seguir para Fráguas, ou a outras várias localidades da Serra.
Castelo, quanto a mim perdeu importância apenas por que se encontra geograficamente situada numa espécie de promontório sem saída. Houvessem estradas que a ligassem a Contim, Beira-Valente, à Granja (neste caso agora já existe), ou mesmo a Leomil, ou Nagoza, Castelo poderia postar-se actualmente em posição bem diferente. Castelo foi importante quando foi castelo nos tempos da reconquista aos mouros depois disso nada.
Em suma a chave disto tudo são as ligações viárias e a quantidade e qualidade de população que cada agregado populacional possui.
Quanto à divisão entre Leomil e Moimenta sempre ouvi, desde criança, falar do diferendo de “fronteiras” (Alto do Facho? Rio Nozedo?).
Em minha opinião acho que faz pouco sentido esta dicotomia geográfica. Nos últimos trinta anos (tantos quanto me encontro em Macau – República Popular da China) tenho verificado a cada ano que passa e que passo férias em Leomil que Leomil e Moimenta se aproximam cada vez mais através do vale que divide o Alto do Facho do da Portela. Não tardam mais dez, vinte anos, que novas urbanizações liguem sem remissão as duas localidades.
Creio que será uma inevitabilidade (claro que por estar há tantos anos na China, me habituei a perspectivar o futuro a “lá long”. Neste ponto posso citar que Macau só será plenamente território chinês dentro de 40 anos). Tendo essa perspectiva em conta essa guerra de “alecrim e manjerona” entre Leomil e Moimenta será resolvida pelo tempo. Acho eu.
Quanto à transformação da Vila de Moimenta e das suas não sei quantas freguesias em cidade espero que seja levada a bom termo. Mas não a conto para breve. Tudo vai depender da capacidade das gentes de Leomil, Castelo, Paraduça, Semitela, Moimenta, Paradinha, etc.etc. chegarem a consenso (espero não ter esquecido nenhuma freguesia nem nenhum lugar) não foi por mal, mas apenas por estar longe das tricas paroquiais.
Friday, April 1, 2011
Este pássaro que assobia
Que parece noiteibó disse-me no outro dia
Que assobia pela avó
Não pode ser passaroco!
Respondi-lhe a meio trilho
Sabes lá pássaro louco
Sabes lá de quem és filho?
Quanto mais da tua avó!
E o pássaro a assobiar
Insistia em me contar
Que era filho e era neto
E era mesmo bisneto
De quem soubesse cantar
Nesse momento o meu cão
No trilho
Olhou de soslaio
E começou a ladrar
(Evidentemente que o diálogo do dono com o pássaro não lhe estava a agradar).
Ciumentos cão e dono e as árvores e as plantas rasteiras.
Tudo, tudo a exclamar.
Dos galhos altos da floresta baixo os olhos
Para a terra
Onde se estendem curvos barros de estradão
Ervas laterais
E o meu cão.
Então,
Por telepatia
(como comunicamos sempre),
diz sentencioso
O meu velho Labrador
Nesse momento fleumático,presente e ciumento
Em que deixou transparecer num arrepio de momento
Cauda e orelhas a abanar.
Meu dono não te deixes enganar
O pássaro canta e assobia
Mas não cheira deste mundo a anatomia
Vive na estratosfera
Noutra gnoseologia
Nós não
Vivemos na terra
O dia a dia
Do olfacto do chão.
Nesse momento
O mundo emudeceu
Um esporo floral
Esmorescente primaveril e decorrente
Caiu de uma árvore e
Entrou-me nas narinas
E nessa altura espirrei
Estás a ver meu dono
Disse o meu cão
São as narinas,
As feramonas
Quanto ao resto não sei.
J. Guedes 09 Março 2011
Saturday, March 12, 2011
Eu e meus irmãos na Real República Bota-A- Baixo (Rua de S. Salvador, Coimbra) 1968. Num tempo em que Zeca Afonso preenchia os sons das vielas da cidade. Adriano dava as primeiras notas da sua biografia musical e Fausto vindo do “Ultramar” se começava a afirmar, também, como “baladeiro” oficial da juventude estudantil contra o regime nos tempestuosos saraus do cinema Gil Vicente”. Alguém já se recorda disso?
Meu irmão mais velho era residente veterano “Merda de Doutor”. Nós éramos “bichos” e eu mais “bicho” ainda.
Mas por sobre toda esta atmosfera pairavam as notas de guitarra de Paredes. Sons de liberdade que não tardariam muito a chegar.
É por isso que Paredes preenche ainda hoje o meu imaginário juvenil e por isso o relembrei nos “posters” anteriores
Os "posters" anteriores foram-me suscitados pela manifestação de Hoje que devido à diferença de fusos horários não sei como decorreu em Lisboa e nas restantes cidades e Deolinda de que meu filho diz gostar por ser nova e hodierna interpretação do fado.
Por que é fim-de-semana tive tempo para ouvir com mais atenção a tal Deolinda e não desgostei. Mas depois fui ao “yutube” (é assim que se escreve, ou “youtube”? Não sei nada destas coisas modernas!...) e descobri os fados da Amália. Originais e bonitos. São poucos, muito poucos os fados de que gosto e por isso resolvi deixar três dos que de facto me deixam extasiado. O resto de Amália e dos fadistas de Lisboa pouco interessa (em minha opinião). Meu Irmão mais velho gostava muito do fado e cantava bem. Ia às tascas de Lisboa e perdia tempo a ouvir as histórias cantadas de “faca e alguidar” como dizia nosso Pai. Nosso Pai que tocava guitarra de Coimbra e cantava com afino as baladas da “Lusa Atenas”.
Pena é que o fado e a balada de Coimbra se tenham extinguido com Luís Góis, depois de Zeca Afonso e dos clássicos anteriores. Ouvi dizer que uma rapariga canta agora fado de Coimbra e até gravou um disco, mas creio que não teve grande sucesso. Deolinda teve. Ainda bem. Será por aqui que a música portuguesa se poderá afirmar em novas gerações originais e genuínas? Não sei, mas parece-me que há caminho a abrir e gente nova a descobrir.
Wednesday, March 9, 2011
O meu cão sem trela e a liberdade
LIBERDADE
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada.
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por Dom Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca....
Fernando Pessoa, Obra Poética
Publico este poema de Luís Guimarães porque vale a pena. É uma variação (muito) provavelmente inspirada em Guerra Junqueiro – quase um plágio, do poeta, dir-se-ia, mas na verdade muito longe disso. Na verdade é o cão de Junqueiro mas do século XX (perdão XXI!..). Faz chorar tanto como o anterior, ou mais ainda. E é igual ao meu com que convivo há duas décadas e de que insisto em publicar mais uma fotografia que acima fica resguarda na penunbra dos dias.
Autor: - Luiz Guimarães
Eu tive um cão. Chamava-se Veludo:
Magro, asqueroso, revoltante, imundo,
Para dizer numa palavra tudo
Foi o mais feio cão que houve no mundo.
Recebi-o das mãos dum camarada.
Na hora da partida, o cão gemendo
Não me queria acompanhar por nada:
Enfim - mau grado seu - o vim trazendo.
O meu amigo cabisbaixo, mudo,
Olhava-o ... o sol nas ondas se abismava....
«Adeus!» - me disse,- e ao afagar Veludo
Nos olhos seus o pranto borbulhava.
«Trata-o bem. Verás como rasteiro
Te indicarás os mais sutís perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos.»
Veludo a custo habituou-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.
Nas longas noites de luar brilhante,
Febril, convulso, trêmulo, agitado
A sua cauda - caminhava errante
A luz da lua - tristemente uivando
Toussenel: Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão estes senhores.
Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
Cinco meses depois, do meu amigo
Um envelope fartamente cheio:
Era uma carta. Carta! era um artigo
Contendo a narração miuda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Plata,
Falava em rios, árvores gigantes:
Gabava o steamer que o levou; dizia
Que ia tentar inúmeras empresas:
Contava-me também que a bordo havia
Mulheres joviais - todas francesas.
Assombrava-me muito da ligeira
Moralidade que encontrou a bordo:
Citava o caso d’uma passageira...
Mil coisas mais de que me não recordo.
Finalmente, por baixo disso tudo
Em nota breve do melhor cursivo
Recomendava o pobre do Veludo
Pedindo a Deus que o conservasse vivo.
Enquanto eu lia, o cão tranquilo e atento
Me contemplava, e - creia que é verdade,
Vi, comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejarem de saudade.
Depois lambeu-me as mãos humildemente,
Estendeu-se a meus pés silencioso
Movendo a cauda, - e adormeceu contente
Farto d’um puro e satisfeito gozo.
Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre d’aquele companheiro;
Para nada Veludo me servia,
Dei-o à mulher d’um velho carvoeiro.
E respirei! «Graças a Deus! Já posso»
Dizia eu «viver neste bom mundo
Sem ter que dar diariamente um osso
A um bicho vil, a um feio cão imundo».
Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora
Um alazão inglês, de sela ou tiro,
Ou uma gata branca sismadora.
Mal respirei, porém! Quando dormia
E a negra noite amortalhava tudo
Sentí que à minha porta alguem batia:
Fui ver quem era. Abrí. Era Veludo.
Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,
Farejou toda a casa satisfeito;
E - de cansado - foi rolar dormindo
Como uma pedra, junto do meu leito.
Preguejei furioso. Era execrável
Suportar esse hóspede importuno
Que me seguia como o miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.
E resolvi-me enfim. Certo, é custoso
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um meio só: era matá-lo
Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar na solidão gemendo
Arrebentava em uivos e lamentos...
De instante em instante ia o tufão crescendo.
Chamei Veludo; ele seguia-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto
E a chuva meus cabelos fustigava.
Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vogamos;
Dava-me força o torvo pensamento:
Peguei num remo - e com furor remamos
Veludo à proa olhava-me choroso
Como o cordeiro no final momento,
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.
No largo mar ergui-o nos meus braços
E arremessei-o às ondas de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte. Era pungente.
Voltei à terra - entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.
Mas ao despir dos ombros meus o manto
Notei - oh grande dor! - haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata: - eu tinha-o unido
Contra o meu coração constantemente
E o conservava no maior recato
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.
Certo caira além no mar profundo,
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal! Ah, se Veludo
Duas vidas tivera - duas vidas
Eu arrancaria àquela besta morta
E àquelas vís entranhas corrompidas.
Nisto sentí uivar à minha porta.
Corrí, - abrí... Era Veludo! Arfava:
Estendeu-se a meus pés, - e docemente
Deixou cair da boca que espumava
A medalha suspensa da corrente.
Fôra crível, oh Deus? - Ajoelhado
Junto do cão - estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo: estava enregelado;
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto.
Nota da Escada de Jacob:
O meu cão ao contrário dos de Guimarães e Junqueiro, não é revoltado nem imundo. É cão apenas. Acorda, come e dorme em sono profundo sempre que surge ocasião. Outras vezes corre, corre e corre (quase todos os dias) e sem trela, embora esteja sempre de olho e precaução, para saber se o dono está por perto na ocasião não vá perder-se. Àh como gosto do meu cão!
Sunday, February 27, 2011
E agora um poema que não é meu, mas que faz chorar até às lágrimas.
MEMÓRIA
À Minha Mãe
Ao meu Pai
Aquele que partiu no brigue Boa Nova
E na barca Oliveira, anos depois, voltou;
Aquele santo (que é velhinho e já corcova)
Uma vez, uma vez, linda menina amou:
Tempos depois, por uma certa lua nova,
Nasci eu… O velhinho ainda cá ficou,
Mas ela disse: - «Vou, ali adiante, à Cova,
António, e volto já…» - e ainda não voltou!
António é vosso. Tomai lá a vossa obra!
«Só» é o poeta-nato, o lua, o santo, a cobra!
Trouxe-o dum ventre: não fiz mais do que o escrever…
Lede-o e vereis surgir do poente havidas mágoas,
Como quem vê o Sol sumir-se, pelas águas,
E sobe os alcantis para o tornar a ver!
(António Nobre)
Versejar é perder tempo quando não há tempo a perder.
Por exemplo
Ainda agora me atrasei
E falhei
Irremediavelmente e para meu mal
A primeira notícia do telejornal.
Tudo porque estava ingenuamente
Sobre estes versos a preguiçar
Antes estivesse a dormir.
Sim a dormir o tempo não se perde
Nem se perde, por exemplo, o autocarro.
Quando se dorme dorme-se e pronto.
Dormir é uma condição da vida
E pelo menos sonha-se, o que não é mau,
Principalmente quando se sonha com coisas boas.
Agora versejar?
É dormir acordado
E arriscamo-nos todos, neste caso
A dar azo
A que nos digam: - Estás a dormir, ou quê?
Olha que o jantar arrefece.
Não se pode responder a quem tem os pés bem assentes na terra
A quem nos diz que perdemos o telejornal e o autocarro e que a comida arrefece
Porque estávamos a perder tempo a fazer versos.
Ainda se estivesses
A fazer as contas do
Vá lá...
Mas versos?
Olha que também arrefece o chá
Sim também o tal que gostas tantos de tomar
Depois de jantar
Vai dormir João
Gostas mais de sonhar do que de viver.
E foi então
Que nessa ocasião
Eu e o meu cão
Adormecemos.
Ele no sofá
E eu no chão
J.Guedes
Friday, February 25, 2011
E assim me enterrei
Na neve branca com que subitamente me deparei
quando saía de casa.
Tinha cinco anos? Não sei.
Mas a verdade é que feliz de mim me lancei
Como num golpe de cartas nessa vaza
Quando era criança feliz
E se me quebrou a asa
De anjo pequenino.
Afoguei-me, ofeguei-me, cansei-me.
Que coisa instante bela irrepetível
Submergir e depois emergir no meio da neve
Leve.
Que coisa feliz!...
Vós que nasceis
noutros tempos e noutras latitudes
Nunca sabereis
o que foi afogar-me
Na leveza leve da neve
Nesse nevão de criança de mil novecentos e cinquenta e seis.
Tinha cinco anos de idade
E na verdade
Ainda hoje não me lembro bem se foi assim, ou não
Enfim!...
Mas recordo que tinha cinco anos de idade
Isso é atestada autenticidade
Nos registos da meteorologia oficial e da neve profunda
Leve
Que caía sem registos nem vistos
Como a neve
Que livre se reconhece em flocos e cai como deve
Segundo as leis da física
E onde me enterrei e me afoguei e esbracejei
E já lá vão, anos e arcanos
tempos que levamos
Sem saber se foi de facto assim, ou não
Sim! Passaram décadas e anos
Passaram tantos anos!
E assim.
Assim!...
Desses tempos, nascentes
E esmorecentes
Me deportei e departei
Afinal todos, dia a dia, de nós próprios nos zarpamos
de absortos portos.
Do que recordo ao certo já não sei.
Que aborrecimento é esta coisa de passarem os anos.
J. Guedes
Domingo 26 de Dezembro de 2010
O tio Arnaldo trata disso tudo
Como sempre tratou
As lágrimas quedam-se com ele em ângulo agudo
Convergente
Por aqui estou
Presente!
Afirma sem dizer como se fosse um surdo mudo
O Tio Arnaldo quando tudo falta sempre trata de tudo.
Que heroicidade esta de meu irmão
Verter as lágrimas de todos nós
Sozinho
Sublimemente mudo
Num cadinho
De ouro
Besouro
Coerente
Sempre consciente
Sem dizer nada na vida corrente
de todos nós
Trata do que deve como as mós
Dos moinhos antigos sem se dar por elas
Rodam, rodam e alimentam
De farinha bocas que não sabem que têm fome
E a família vive
E a família come
E o mundo gira.
Incoerente informe
E acorda e dorme.
Foram-se os pais, os tios e os avós.
Falta alguém?
Faltamos todos nós
Esmorecem as velas
Mas o Tio Arnaldo não.
Do trabalho obreiro
Pega com uma mão
Uma agonia
E com a outra uma exactidão
Do dia a dia
Sobre todos os chorados mortos temos que sobreviver
A vida é assim que se há-de fazer?
14 Janeiro 2011-01-14
J. Guedes
Pequena variação sobre o poema anterior
O Meu cão realista
Dizem que os cães vêm e pressentem
Serão animais místicos esses cães inventados pela literatura?
O meu não vê nem pressente nada.
Acorda, de madrugada
Brinca cheira, ladra
Abana a cauda
Durante o dia, enquanto o dia dura
E, sem dizer nada
(mal educado, pode dizer-se) pelos padrões do dono
enrosca-se em sono
Bem profundo sono, mal termina
E finda
A ultima jornada.
E fica no abandono
Do seu palácio sofá da sala de jantar
Pronto para acordar
Feliz no dia seguinte.
Às vezes cedendo, eu, ao que se diz
Ser dos cães presciência
Em intervalo de serão
Entre a leitura de um livro e olhadela de soslaio à televisão
E do mundo real em momentânea ausência,
Falo com ele sobre filosofia.
Mas ele abre os grandes olhos pestanudos
Fixa-me e responde que prefere os filósofos mudos
E deixa-se de novo dormir.
Pelo que vejo, quotidianamente,
(ou seja de quando em vez)
O meu cão não vê nem pressente.
Limita-se, a ser ele
Pessoal e com próprio nome mês atrás de mês (já lá vão anos).
Reage, naturalmente, à sede ao frio e à fome
Como qualquer ser vivo
O meu cão
Que encaro sempre como o último dos “moicanos”
Que dorme junto à minha mão
No sofá.
Que não sente nem pressente
Mas àh...!...
Quando um ruído o desperta
Aí vai ele à descoberta
Levanta-se grave
Estica as patas.
Eu, expectante (nessas alturas), olho-o de soslaio
Entendeu alguma manifestação
metafísica de ocasião
Que me escapou?
Terá a doença da velhice e ter-lhe-há dado algum final desmaio?
Não!
Para o meu cão
Não há metafísica, nem sentimentos tolos como depressão
Saudade, ou mágoa
O meu cão
levantou-se,
Espreguiçou-se,
Esgueirou-se pela sala
E foi apenas beber água.
Que filósofo colossal
É sempre nessa repetida ocasião
O meu cão
Que não sente nem pressente
Aliás tem cataratas e já ouve mal
E mal sente
A gente
vizinha que se extravasa
Em ruídos quotidianos.
Interessa-me lá o que se passa fora de casa! (Diz ele)
Já levo tantos anos
De te guardar
Meu dono!
Já bebi a minha água
Deixa-te de imaginar
Quero regressar ao sono
É fora de horas
Vê bem.
Tudo dorme
Apaga a luz e vai dormir também.
J. Guedes
25 Janeiro 2011
Que coisa extraordinária é o meu cão.
Não faz nada.
Dorme, come e cala.
Eu não!
Ou nem sempre talvez...
Comigo é vezes sim, outras não.
Um compromisso de ocasião.
Para o meu cão
Não!
É sempre assim.
Tem sede vai beber
Tem fome
Come
Sou eu que lhe dou
A água e a ração.
E ele nem sequer agradece
A esta minha permanente disponibilidade.
Responde-me ele
(Ou eu próprio a mim).
- A vida é assim! gostas de mim!
E eu, evidentemente dele é verdade.
E é tudo.
Não me dás água e pão por caridade
Dás-me simplesmente
Sem interrogações,
Nem obrigações
Inúteis
Fico com o que queres, ou o que reste (principalmente quando não há dinheiro)
Ossos, ou migalhas, não importa. Não sou, como sabes, interesseiro.
O que interessa é que gostas de mim.
Eu de ti gosto obviamente.
Por isso tens-me por aqui sempre presente
A abanar a cauda e a ladrar sem tino
A recordar-te o tempo em que eras pequenino
Quando não pensavas, verdadeiramente, em nada.
É como se apresenta a vida para nós os dois.
Eu que sou velho e cão
Sou sempre pequenino como tu ainda és.
O Mundo para ti será sempre uma charada.
Para mim não.
Não te esgotes em especulações fúteis
Nem em quês e porquês.
O amor nasce connosco de enxurrada
Mas limpa e aclara as coisas úteis
Quando nas emoções
se intrometem razões urgentes, ou simplesmente é preciso
Estás a ver?
E principalmente as que são fundamentais para viver.
Por muito que tu penses – acrescenta o meu cão -
O Mundo é sempre justo, racional, conciso.
Deus surge inevitavelmente e sempre na ocasião
Para resolver o que é preciso.
Não te preocupes. Não és o meu patrão
És o meu dono e íntimo amigo
As dívidas que não tenho para contigo
Não tas pago sabes bem!
As que tens, com outros deixa lá que outros as pagarão.
Vai dormir. É tarde
Amanhã tens que trabalhar
Eu não
Durmo e acordo quando calha
Como compete a qualquer cão de guarda ou de vigia
Tu, meu dono, não.
Para ti a vida é umas vezes um drama outras uma elegia,
Ou apenas novo dia que se aguarda
E resguarda.
Para mim não
A vida é unicamente o momento exacto
Em que chegas a casa
E brincas comigo
Para mim não existe tempo meu amigo
Tudo se extravasa
Em amor e alegria nesse pequeno acto
De ocasião
Nesse momento de lucubração
O meu cão
Subtil se esgueira para o quarto enquanto visto o pijama
Deita-se de quatro no tapete
E eu na cama.
Encerramos nessa altura a cortina do mundo
Eu e o meu cão anónimos, felizes, caímos os dois em sono profundo.
J. Guedes
25 Janeiro 2011
Monday, January 24, 2011
Eu nas horas vagas e o meu cão filósofo
Dizem que os cães vêm e pressentem
Serão animais místicos esses cães inventados pela literatura?
O meu não vê nem pressente nada.
Acorda, de madrugada
Brinca cheira, ladra abana a cauda
Durante o dia, enquanto o dia dura
E, sem dizer nada
(mal educado, pode dizer-se) pelos padrões do dono
enrosca-se em sono
Bem profundo sono, mal termina mais uma jornada.
E fica no abandono
Do seu palácio sofá da sala de jantar
Pronto para acordar
Feliz no dia seguinte.
Às vezes cedendo, eu, ao que se diz
Ser dos cães presciência
Em intervalo de serão
Entre a leitura de um livro, olhadela à televisão
E do mundo real em momentânea ausência,
Falo com ele sobre filosofia.
Mas ele abre os grandes olhos pestanudos
Fixa-me e responde que prefere os filósofos mudos
E deixa-se de novo dormir.
Pelo que vejo, quotidianamente,
(ou seja de quando em vez)
O meu cão não vê nem pressente.
Limita-se, a ser ele
Pessoal e com próprio nome mês atrás de mes (já lá vão anos).
Reage naturalmente à sede ao frio e à fome
Como qualquer ser vivo
O meu cão
Que dorme junto à minha mão
No sofá.
Que não sente nem pressente
Mas àh...!...
Quando um ruído o desperta
Aí vai ele à descoberta
Levanta-se grave
Estica as patas.
Eu, expectante (nessas alturas), olho-o de soslaio
Entendeu alguma manifestação
metafísica de ocasião
Que me escapou?
Mas não.
Para meu cão
Não há metafísica, nem sentimentos tolos como depressão
Saudade, ou mágoa
O meu cão
levantou-se,
Espreguiçou-se,
Esgueirou-se pela sala
E foi apenas beber água.
Que filósofo colossal
É sempre nessa repetida ocasião
O meu cão
Que não sente nem pressente
Aliás tem cataratas e já ouve mal
E mal sente
A gente
vizinha que se extravasa
Em ruídos quotidianos.
Interessa-me lá o que se passa fora de casa!
Já levo tantos anos
De te guardar
Meu dono!
Já bebi a minha água
Deixa-te de imaginar
Quero regressar ao sono
É fora de horas
Vê bem.
Tudo dorme
Apaga a luz e vai dormir também.
J. Guedes
25 Janeiro 2011
Saturday, January 15, 2011
O meu cão e Guerra Junqueiro
FIEL
(Um poema de Guerra Junqueiro. Conto poético. Reflexão).
Na luz do seu olhar tão lânguido, tão doce,
Havia o que quer que fosse
D’um íntimo desgosto :
Era um cão ordinário, um pobre cão vadio
Que não tinha coleira e não pagava imposto.
Acostumado ao vento e acostumado ao frio,
Percorria de noite os bairros da miséria
À busca dum jantar.
E ao ver surgir da lua a palidez etérea,
O velho cão uivava uma canção funérea,
Triste como a tristeza oceânica do mar.
Quando a chuva era grande e o frio inclemente,
Ele ia-se abrigar às vezes nos portais ;
E mandando-o partir, partia humildemente,
Com a resignação nos olhos virginais.
Era tranquilo e bom como as pombinhas mansas ;
Nunca ladrou dum pobre à capa esfarrapada :
E, como não mordia as tímidas crianças,
As crianças então corriam-no a pedrada.
Uma vez casualmente, um mísero pintor
Um boêmio, um sonhador,
Encontrara na rua o solitário cão ;
O artista era uma alma heróica e desgraçada,
Vivendo numa escura e pobre água furtada,
Onde sobrava o gênio e onde faltava o pão.
Era desses que têm o rubro amor da glória,
O grande amor fatal,
Que umas vezes conduz às pompas da vitória,
E que outras vezes leva ao quarto do hospital.
E ao ver por sobre o lodo o magro cão plebeu,
Disse-lhe : - "O teu destino é quase igual ao meu :
Eu sou como tu és, um proletário roto,
Sem família, sem mãe, sem casa, sem abrigo ;
E quem sabe se em ti, ó velho cão de esgoto,
Eu não irei achar o meu primeiro amigo !..."
No céu azul brilhava a lua etérea e calma ;
E do rafeiro vil no misterioso olhar
Via-se o desespero e ânsia d’uma alma,
Que está encarcerada, e sem poder falar.
O artista soube ler naquele olhar em brasa
A eloqüente mudez dum grande coração ;
E disse-lhe : - "Fiel, partamos para casa :
Tu és o meu amigo, e eu sou o teu irmão. -"
E viveram depois assim por longos anos,
Companheiros leais, heróicos puritanos,
Dividindo igualmente as privações e as dores.
Quando o artista infeliz, exausto e miserável,
Sentia esmorecer o génio inquebrantável
Dos fortes lutadores ;
Quando até lhe acudiu às vezes a lembrança
Partir com uma bala a derradeira esp’rança,
Pôr um ponto final no seu destino atroz ;
Nesse instante do cão os olhos bons, serenos,
Murmura-lhe : - Eu sofro, e a gente sofre menos,
Quando se vê sofrer também alguém por nós.
Mas um dia a Fortuna, a deusa milionária,
Entrou-lhe pelo quarto, e disse alegremente :
"Um génio como tu, vivendo como um pária,
Agrilhoado da fome à lúgubre corrente !
Eu devia fazer-te há muito esta surpresa,
Eu devia ter vindo aqui p’ra te buscar ;
Mas moravas tão alto ! E digo-o com franqueza
Custava-me subir até ao sexto andar.
Acompanha-me ; a glória há de ajoelhar-te aos pés !..."
E foi ; e ao outro dia as bocas das Frinés
Abriram para ele um riso encantador ;
A glória deslumbrante iluminou-lhe a vida
Como bela alvorada esplêndida, nascida
A toques de clarim e a rufos de tambor !
Era feliz. O cão
Dormia na alcatifa à borda do seu leito,
E logo de manhã vinha beijar-lhe a mão,
Ganindo com um ar alegre e satisfeito.
Mas aí ! O dono ingrato, o ingrato companheiro,
Mergulhado em paixões, em gozos, em delícias,
Já pouco tolerava as festivas carícias
Do seu leal rafeiro.
Passou-se mais um tempo ; o cão, o desgraçado,
Já velho e no abandono,
Muitas vezes se viu batido e castigado
Pela simples razão de acompanhar seu dono.
Como andava nojento e lhe caíra o pelo,
Por fim o dono até sentia nojo ao vê-lo,
E mandava fechar-lhe a porta do salão.
Meteram-no depois num frio quarto escuro,
E davam-lhe a jantar um osso branco e duro,
Cuja carne servira aos dentes d’outro cão.
E ele era como um roto, ignóbil assassino,
Condenado à enxovia, aos ferros, às galés :
Se se punha a ganir, chorando o seu destino,
Os criados brutais davam-lhe pontapés.
Corroera-lhe o corpo a negra lepra infame.
Quando exibia ao sol as podridões obscenas,
Poisava-lhe no dorso o causticante enxame
Das moscas das gangrenas.
Até que um dia, enfim, sentindo-se morrer,
Disse "Não morrerei ainda sem o ver ;
A seus pés quero dar meu último gemido..."
Meteu-se-lhe no quarto, assim como um bandido.
E o artista ao entrar viu o rafeiro imundo,
E bradou com violência :
"Ainda por aqui o sórdido animal !
É preciso acabar com tanta impertinência,
Que esta besta está podre, e vai cheirando mal !"
E, pousando-lhe a mão cariciosamente,
Disse-lhe com um ar de muito bom amigo :
"Ó meu pobre Fiel, tão velho e tão doente,
Ainda que te custe anda daí comigo."
E partiram os dois. Tudo estava deserto.
A noite era sombria ; o cais ficava perto ;
E o velho condenado, o pobre lazarento,
Cheio de imensas mágoas
Sentiu junto de si um pressentimento
O fundo soluçar monótono das águas.
Compreendeu enfim! Tinha chegado à beira
Da corrente. E o pintor,
Agarrando uma pedra atou-lh’a na coleira,
Friamente cantando uma canção d’amor.
E o rafeiro sublime, impassível, sereno,
Lançava o grande olhar às negras trevas mudas
Com aquela amargura ideal do Nazareno
Recebendo na face o ósculo de Judas.
Dizia para si : "È o mesmo, pouco importa.
Cumprir o seu desejo é esse o meu dever :
Foi ele que me abriu um dia a sua porta :
Morrerei, se lhe dou com isso algum prazer."
Depois, subitamente
O artista arremessou o cão na água fria.
E ao dar-lhe o pontapé caiu-lhe na corrente
O gorro que trazia
Era uma saudosa, adorada lembrança
Outrora concedida
Pela mais caprichosa e mais gentil criança,
Que amara, como se ama uma só vez na vida.
E ao recolher à casa ele exclamava irado :
"E por causa do cão perdi o meu tesouro !
Andava bem melhor se o tinha envenenado !
Maldito seja o cão! Dava montanhas d’oiro,
Dava a riqueza, a glória, a existência, o futuro,
Para tornar a ver o precioso objecto,
Doce recordação daquele amor tão puro."
E deitou-se nervoso, alucinado, inquieto.
Não podia dormir.
Até nascer da manhã o vivido clarão,
Sentiu bater à porta ! Ergueu-se e foi abrir.
Recuou cheio de espanto : era o Fiel, o cão,
Que voltava arquejante, exânime, encharcado,
A tremer e a uivar no último estertor,
Caindo-lhe da boca, ao tombar fulminado,
O gorro do pintor !