Que coisa extraordinária é o meu cão.
Não faz nada.
Dorme, come e cala.
Eu não!
Ou nem sempre talvez...
Comigo é vezes sim, outras não.
Um compromisso de ocasião.
Para o meu cão
Não!
É sempre assim.
Tem sede vai beber
Tem fome
Come
Sou eu que lhe dou
A água e a ração.
E ele nem sequer agradece
A esta minha permanente disponibilidade.
Responde-me ele
(Ou eu próprio a mim).
- A vida é assim! gostas de mim!
E eu, evidentemente dele é verdade.
E é tudo.
Não me dás água e pão por caridade
Dás-me simplesmente
Sem interrogações,
Nem obrigações
Inúteis
Fico com o que queres, ou o que reste (principalmente quando não há dinheiro)
Ossos, ou migalhas, não importa. Não sou, como sabes, interesseiro.
O que interessa é que gostas de mim.
Eu de ti gosto obviamente.
Por isso tens-me por aqui sempre presente
A abanar a cauda e a ladrar sem tino
A recordar-te o tempo em que eras pequenino
Quando não pensavas, verdadeiramente, em nada.
É como se apresenta a vida para nós os dois.
Eu que sou velho e cão
Sou sempre pequenino como tu ainda és.
O Mundo para ti será sempre uma charada.
Para mim não.
Não te esgotes em especulações fúteis
Nem em quês e porquês.
O amor nasce connosco de enxurrada
Mas limpa e aclara as coisas úteis
Quando nas emoções
se intrometem razões urgentes, ou simplesmente é preciso
Estás a ver?
E principalmente as que são fundamentais para viver.
Por muito que tu penses – acrescenta o meu cão -
O Mundo é sempre justo, racional, conciso.
Deus surge inevitavelmente e sempre na ocasião
Para resolver o que é preciso.
Não te preocupes. Não és o meu patrão
És o meu dono e íntimo amigo
As dívidas que não tenho para contigo
Não tas pago sabes bem!
As que tens, com outros deixa lá que outros as pagarão.
Vai dormir. É tarde
Amanhã tens que trabalhar
Eu não
Durmo e acordo quando calha
Como compete a qualquer cão de guarda ou de vigia
Tu, meu dono, não.
Para ti a vida é umas vezes um drama outras uma elegia,
Ou apenas novo dia que se aguarda
E resguarda.
Para mim não
A vida é unicamente o momento exacto
Em que chegas a casa
E brincas comigo
Para mim não existe tempo meu amigo
Tudo se extravasa
Em amor e alegria nesse pequeno acto
De ocasião
Nesse momento de lucubração
O meu cão
Subtil se esgueira para o quarto enquanto visto o pijama
Deita-se de quatro no tapete
E eu na cama.
Encerramos nessa altura a cortina do mundo
Eu e o meu cão anónimos, felizes, caímos os dois em sono profundo.
J. Guedes
25 Janeiro 2011
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