Thursday, October 23, 2008

Minha Tia avó, o Teatro Baquet do Porto, o General Prim e as memórias da adolescência


Minha Tia Avó, Maria José, tinha uma memória extraordinária. Morreu com quase cem anos. Nasceu em 1867 em Ervedosa do Douro.
Dela recordo histórias interessantes que preencheram o meu imaginário de criança durante os anos 50 e 60 do século passado. Inserirei uma fotografia desta minha querida tia num próximo post, logo que encontre alguma. Nascida numa família de políticos (ainda que regionais) nunca se meteu na política (nesse tempo, mesmo nas famílias liberais as meninas limitavam-se aos lavores, a aprender francês e a tocar piano), essa minha Tia não tocava piano, mas falava francês e lia tudo quanto lhe aparecia à mão, fosse em português, ou em francês. Mas essencialmente assimilava tudo quanto ouvia e se dizia em família. Que memória tinha com 96 anos de idade e como comunicava. Que pessoa fora do comum!
Nos tempos em que a RTP era a preto e branco a Tia Maria José (Tia Mariqinhas como a tratávamos em família) substituía os programas cinzentos e os telejornais apresentados por Manuel Caetano, contando histórias a cores (sim a cores) já que a forma vívida como falava era um colorido de imagens impresso em gravuras coloridas semelhantes às de “O António Maria” de Bordalo Pinheiro.
Então apagava-se a desinteressante televisão (já semi-apagada pela censura o Estado) e ouviam-se histórias bem mais interessantes de minha Tia
Falava de coisas que eu desconhecia e que por muitos anos seguintes persisti em desconhecer. Eram de outros tempos e de um outro Portugal e eu era adolescente demais.
Minha tia, com quatro, ou cinco anos de idade dizia lembrar-se de dramas obliterados há muito pela história, como o último enforcamento a que se assistiu no Porto de um criminoso qualquer ao qual foi levada às costas de uma criada que queria ver o espectáculo. Teria sido isto num ano qualquer da década de 70 do século XIX. Minha tia pequenina, não percebeu bem o que viu, ou deixou de vêr, mas meu bisavô José Guedes, ficou furioso (não sei se despediu a criada, mas acho que sim). Mas minha Tia também assistiu a cenas felizes da vida nomeadamente no principal teatro do Porto, o Teatro Baquet que um incêndio fez desaparecer da vida cultural da cidade. Ali assistiu a revistas inolvidáveis que despertavam simultaneamente, lágrimas e gargalhadas de que fixou alguns refrões. Deixo a seguir inscritos dois de que me lembro minha Tia ter contado:-

As irmãs da caridade pum
Vivem na quinta Amarela
Pum catapum agora, agora
Réu, réu pum

Esta rima tinha a ver com o sentimento anti clerical que nesses tempos reinava em Portugal, embora ainda hoje esteja para saber quem eram as irmãs da Quinta amarela. Creio que seriam as irmãs franciscanas francesas que foram expulsas de Portugal juntamente com os Jesuítas, mas não estou certo. Hei-de fazer consulta acerca desta cêna.

Este segundo “sketch” da tal revista do Teatro Baquet que minha Tia recitava rezava assim:-

Que nelas bombas
Que nelas Bombas
Òh clarim
Que viva o Porto
Que viva Braga
Que viva o Prim.


Fixei estes versos, mas nunca me preocupei até hoje em saber o que queriam dizer. Referiam-se a um momento político da altura.
Mas quem era o Prim? perguntei a minha Tia.
- Era um general espanhol liberal que Meu pai (meu bisavô) tinha em grande conta política, respondeu.
Fiquei na mesma e não me lembrei mais do caso até hoje, altura em que decidi consultar a Internet e esclarecer quem era esse general Prim. E para minha grande surpresa verifiquei que o dito general foi uma das primeiras pessoas a ser fotografadas no Mundo. Tinha surgido o daguerreótipo, ou seja a fotografia que em vez de obrigar o modelo a posar horas e horas para um pintor bastava sentar-se, tomar a melhor posição e depois do um, dois, três do fotógrafo de mão e dedo indicador apontandos para o ar e do subsequente “clik” ali ficava gravado para a posteridade o seu retracto em menos de um segundo.
Só agora compreendi o facto de não existir uma única fotografia de meu Bisavô e só agora compreendi também inteiramente o que minha, Tia Maria José dizia, quando afirmava:
- Meu Pai nunca se deixou fotografar.
-Porquê?
- Não sei bem, mas Ele dizia assim:- Nunca me retractei na vida. Não é agora que me vou retractar!
Meu bisavô associava a palavra retracto não à novidade tecnológica, mas sim ao facto de se arrepender dos seus princípios morais, políticos e sociais dos quais nunca de facto abdicou.

No comments: