Monday, October 20, 2008

O meu cão e o do Guerra Junqueiro. O meu tem sorte e paga imposto


FIEL

Na luz do seu olhar tão lânguido, tão doce,
Havia o que quer que fosse
D’um íntimo desgosto:
Era um cão ordinário, um pobre cão vadio
Que não tinha coleira e não pagava imposto.
Acostumado ao vento e acostumado ao frio,
Percorria de noite os bairros da miséria
Á busca dum jantar.
E ao ver surgir da lua a palidez etérea,
O velho cão uivava uma canção funérea,
Triste como a tristeza ossiânica do mar.
Quando a chuva era grande e o frio inclemente,
Ele ia-se abrigar às vezes nos portais;
E mandando-o partir, partia humildemente,
Com a resignação nos olhos virginais.
Era tranquilo e bom como as pombinhas mansas;
Nunca ladrou dum pobre à capa esfarrapada:
E, como não mordia as tímidas crianças,
As crianças então corriam-no a pedrada.

Uma vez casualmente, um mísero pintor
Um boémio, um sonhador,
Encontrara na rua o solitário cão;
O artista era uma alma heróica e desgraçada,
Vivendo num escura e pobre água furtada,
Onde sobrava o génio e onde faltava o pão.
Era desses que tem o rubro amor da glória,
O grande amor fatal,
Que umas vezes conduz às pompas da vitória,
E que outras vezes leva ao quarto do hospital.

E ao ver por sobre o lodo o magro cão plebeu,
Disse-lhe: - “O teu destino é quase igual ao meu:
Eu sou como tu és, um proletário roto,
Sem família, sem mãe, sem casa, sem abrigo;
E quem sabe se em ti, ó velho cão de esgoto,
Eu não irei achar o meu primeiro amigo!...”

No céu azul brilhava a lua etérea e calma;
E do rafeiro vil no misterioso olhar
Via-se o desespero e ânsia d’uma alma,
Que está encarcerada, e sem poder falar.
O artista soube ler naquele olhar em brasa
A eloquente mudez dum grande coração;
E disse-lhe: - “Fiel, partamos para casa:
Tu és o meu amigo, e eu sou o teu irmão. –“

E viveram depois assim por longos anos,
Companheiros leais, heróicos puritanos,
Dividindo igualmente as privações e as dores.
Quando o artista infeliz, exausto e miserável,
Sentia esmorecer o génio inquebrantável
Dos fortes lutadores;
Quando até lhe acudiu às vezes a lembrança
Partir com uma bala a derradeira esp’rança,
Por um ponto final no seu destino atroz;
Nesse instante do cão os olhos bons, serenos,
Murmura-lhe: - Eu sofro, e a gente sofre menos,
Quando se vê sofrer também alguém por nós. –

Mas um dia a Fortuna, a deusa milionária,
Entrou-lhe pelo quarto, e disse alegremente:
“Um génio como tu, vivendo como um pária,
Agrilhoado da fome à lúgubre corrente!
Eu devia fazer-te há muito esta surpresa,
Eu devia ter vindo aqui p’ra te buscar;
Mas moravas tão alto! E digo-o com franqueza
Custava-me subir até ao sexto andar.
Acompanha-me; a glória há de ajoelhar-te aos pés!...”
E foi; e ao outro dia as bocas das Frinés
Abriram para ele um riso encantador;
A glória deslumbrante iluminou-lhe a vida
Como bela alvorada esplêndida, nascida
A toques de clarim e a rufos de tambor!

Era feliz. O cão
Dormia na alcatifa à borda do seu leito,
E logo de manhã vinha beijar-lhe a mão,
Ganindo com um ar alegre e satisfeito.
Mas aí! O dono ingrato, o ingrato companheiro,
Mergulhado em paixões, em gozos, em delícias,
Já pouco tolerava as festivas carícias
Do seu leal rafeiro.

Passou-se mais um tempo; o cão, o desgraçado,
Já velho e no abandono,
Muitas vezes se viu batido e castigado
Pela simples razão de acompanhar seu dono.
Como andava nojento e lhe caíra o pelo,
Por fim o dono até sentia nojo ao vê-lo,
E mandava fechar-lhe a porta do salão.
Meteram-no depois num frio quarto escuro,
E davam-lhe a jantar um osso branco e duro,
Cuja carne servira aos dentes d’outro cão.

E ele era como um roto, ignóbil assassino,
Condenado à enxovia, aos ferros, às galés:
Se se punha a ganir, chorando o seu destino,
Os exibia ao sol as podridões obscenas,
Poisava-lhe no dorso o causticante enxame
criados brutais davam-lhe pontapés.
Corroera-lhe o corpo a negra lepra infame.
Quando exibia ao sol as podridões obscenas,
Poisava-lhe no dorso o causticante enxame
Das moscas das gangrenas.

Até que um dia, enfim, sentindo-se morrer,
Disse ”Não morrerei ainda sem o ver;
A seus pés quero dar meu último gemido...”
Meteu-se-lhe no quarto, assim como um bandido.
E o artista ao entrar viu o rafeiro imundo,
E bradou com violência:
“Ainda por aqui o sórdido animal!
É preciso acabar com tanta impertinência,
Que esta besta está podre, e vai cheirando mal!”
E, pousando-lhe a mão cariciosamente,
Disse-lhe com um ar de muito bom amigo:
“Ó meu pobre Fiel, tão velho e tão doente,
Ainda que te custe anda daí comigo.”

E partiram os dois. Tudo estava deserto.
A noite era sombria; o cais ficava perto;
E o velho condenado, o pobre lazarento,
Cheio de imensas mágoas
Sentiu junto de si um pressentimento
O fundo soluçar monótono das águas.

Compreendeu enfim! Tinha chegado à beira
Da corrente. E o pintor,
Agarrando uma pedra atou-lh’a na coleira,
Friamente cantando uma canção d’amor.

E o rafeiro sublime, impassível, sereno,
Lançava o grande olhar às negras trevas mudas
Com aquela amargura ideal do Nazareno
Recebendo na face o ósculo de Judas.
Dizia para si: “È o mesmo, pouco importa.
Cumprir o seu desejo é esse o meu dever:
Foi ele que me abriu um dia a sua porta:
Morrerei, se lhe dou com isso algum prazer.”

Depois, subitamente
O artista arremessou o cão na água fria.
E ao dar-lhe o pontapé caiu-lhe na corrente
O gorro que trazia
Era uma saudosa, adorada lembrança
Outrora concedida
Pela mais caprichosa e mais gentil criança,
Que amara, como se ama uma só vez na vida.

E ao recolher à casa ele exclamava irado:
“E por causa do cão perdi o meu tesouro!
Andava bem melhor se o tenho envenenado!
Maldito seja o cão! Dava montanhas d’oiro,
Dava a riqueza, a glória, a existência, o futuro,
Para tornar a ver o precioso objecto,
Doce recordação daquele amor tão puro.”
E deitou-se nervoso, alucinado, inquieto.
Não podia dormir.
Até nascer da manhã o vivido clarão,
Sentiu bater à porta! Ergueu-se e foi abrir.
Recuou cheio de espanto: era o Fiel, o cão,
Que voltava arquejante, exânime, encharcado,
A tremer e a uivar no último estertor,

Caindo-lhe da boca, ao tombar fulminado,
O gorro do pintor!

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