Friday, May 28, 2010

O vôo do Ganso



Descobri e encantei-me. Afinal a maravilhosa viagem de Nils Holgersson não começou na Suécia nem na imaginação desta mulher Selma Lagerlöf que inventou Kejjsam av Portugallien (O Imperador de Portugal, 1914).

Não tudo começou muito, muito mais tarde. Foi mais ou menos por volta de finais dos anos 50 do século XX nesta ignota aldeia que se chama Goujoím que o ganso tão real quanto inventado levantou voo.

Foi daqui que ao descolar desajeitado da terra o ganso, inadvertidamente, deixou soltar uma pena da sua asa direita que volteou, volteou, volteou e caíu na mão de Arnaldo Guedes que a usou para fazer o prólogo nunca publicado dessa viagem maravilhosa.

E o prólogo ficou assim escrito com a pena nas palavras desse "vale infância".

Assim: -

O VÔO DO GANSO

O nosso ganso de família, como o cão ou o gato passeava-se no quintal naquele passo grotesco, canhestro, bamboleante próprio da espécie. Na família dos patos todos são assim.

O quintal apenas possuía um exíguo tanque de rega, bastante para o efeito, mas acanhado para evoluções do ganso. Coitado!

Não precisaria de um lago, mais associado ao cisne, mas na verdade não tinha condições aquáticas para evoluir com outra graça que realmente não tem em terra firme.

Não é que eu ou outros não sorriam com a desgraça do descaminhar do ganso num desequilíbrio constantemente corrigido constantemente perdido, como uma criança nos primeiros passos, dados no entanto perante as mãos postas de pai prevenido.

O pai do ganso esse não ensina mais. Ele sabe que em terra o filho não tem muitas hipóteses de ter graça e a vida além de graça tem desgraça, mas espera que a mesma vida lhe ofereça lagos de fortuna, além do ar e do espaço infinito e livre.

O nosso ganso vivia confinado em dois socalcos ditos no meu sítio de richeiras (erro diz meu computador intrometido) de um quintal que existe porque o homem ergueu toscos calhaus em muros e sustentou a terra em declive criando terraços de cultivo como o nosso quintal, onde favas, cenouras, cebolas e mais espécies de hortaliça, mantinham o viço pelo Verão afora graças ao tal tanque curto para o ganso.

Neste cenário o ganso vivia em certa felicidade, deduzíamos. Mas quem pode adivinhar alma de ganso, senão talvez no “foie gras” onde se avaliam os bons ou os maus fígados da ave, o que é pelo menos uma ponta da alma.

Na mão da família nunca assim seria avaliado, juro, nem pela cozinheira, nem pelo Orlando furioso com os danos na horta e com o grasnar, ainda por cima malcriado do bicho mimado pelos patrões.

Estava entre nós condenado a morrer de velho. Era família e penso que gostava de nós deduzindo o Orlando. A estranhos grasnava furioso e era capaz de morder. Uma questão de território.

Do meu irmão criança denotava algum receio, mas dos mais velhos parecia gostar. Tinha connosco uma relação de confiança e até afecto, sem no entanto permitir que lhe passassem a mão pelo “pêlo” que era pena. Tinha o seu orgulho e altivez. Com aquele “papo“ não admira.

A vida decorria em paz em casa e no quintal; mas um belo dia, que foi à tarde, ao pôr do sol, naquela hora em que o traço de sombra da nossa montanha trepando como maré vinda do rio Tedo ia subindo e submergindo na montanha em frente, Longa, Carrazedo e ameaçando de penumbra a aldeia de Arcas, que então se deu o insólito e sublime pasmo em Goujoim. Nessa hora em que a melancolia como a sombra sobe no peito dos homens e dos bichos a ave estimada até mimada abeirou-se do muro alto da richeira e “à sorte e à morte” atirou-se literalmente em suicídio para outra vida.

Em queda livre, uma reacção vital comandou-lhe as asas que se abriram em larga envergadura, bateram em desespero e, sustiveram a queda num emocionante arremedo de voo rasante aos telhados dos vizinhos.

Uma emoção suspensa, o pasmo da família mirando do mirante, e o das mulheres do Vale ao soalheiro interrompendo a malha, contrasta com o júbilo da “canalha” à solta, meus amigos da bola, do pião e do pateiro, gritando, cheios de fé no rasgo da aventura e solidários com a ousadia do ganso e o seu anseio de sair da vida estreita do quintal para o horizonte luminoso sobre o vale.

Em breve o voo atarantado da ave trapalhona e angustiada se abriu num dos mais belos voos de condor só comparável a uma sinfonia musical ou a um poema que nos leva e nos enleva em horizontes mais divinos do que humanos.

O ganso lento pesado e arrastado nos dois curtos socalcos do quintal, tinha por dentro um horizonte tão largo a conquistar um anseio de mundo tão intenso que lançado do muro ao precipício insuflou-se-lhe a alma e lançou-se-lhe o corpo num bailado aéreo, tão belo tão suave tão encantador e espantoso, que estarreceu incrédulos.

O voo do ganso foi sublime. Abalou os conceitos dos velhos do Restelo, quero dizer de Goujoim. Diziam eles que apenas os patos bravos fazem largos voos, mas os gansos não. Era teoria caída por terra enquanto o ganso voa.

Mas os jovens crentes e alguns poetas impulsionaram de terra por telepatia os íntimos motores da ave palmípede, que vencida a gravidade, quedou os motores, asas potentes, e planou largos momentos nos nossos olhos vidrados de beleza.

Ficou um vazio no estreito quintal dos meus brinquedos. Faltava-me uma peça evaporada, mas erguendo os olhos por sobre o vale do Tedo, já por si belo, eu sinto esse espaço soberbamente preenchido e quase terminada a busca intemporal do Belo.

Caiu um ganso do muro do meu quintal, mas ergueu-se o encanto que me paira na memória desse vale infância.

Arnaldo Guedes

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