Thursday, April 7, 2011

O cão . Amigo verdadeiro que tanto se presta a morder como a morrer de fome pelo dono.


O molosso fiel de antigas eras
O velho amigo da família humana
Que estrangulava os tigres e as panteras

Foi um gigante de bondade indiana.
Ele dormia em noites solitárias
Atravessado à porta das cabanas

Rondavam na floresta as alimárias;
E aos gritos lamentosos dos chacais
Estremecia o coração dos párias.

Mudos d amor, estranhos animais
Dilatavam os olhos coruscantes
Entre as fulvas vertigens tropicais

Iam beber ao rio os elefantes;
E quebravam na rústica passagem
Os troncos nus das árvores gigantes.

Sobre o cairel da hórrida voragem
Espreitador, inquieto, alucinado
Media a presa o búfalo selvagem.

E ele o molosso intrépido assombrado
Olhava a o céu profundo, esplendoroso
Cheios de um terror sagrado.

Ele forte ruivo monstruoso
E tinha vivas alegrias francas
No puro olhar azul, religioso.

Fugiam dele as grandes águias brancas;
E entravam nas cavernas os leões
Com a cauda hirsuta fustigando as ancas

Ele era o monstro bom das solidões
Tinha uma fresca genuinidade altiva
Que distingue os frescos corações

Naquela alma rude e pensativa
Serena e dócil como as pombas mansas
Havia a luz da aurora primitiva

Ele escondia as garras que eram lanças
E todo se arqueava humildemente
Sob a mão pequenina das crianças.

E os filhos do molosso inteligente
São esta raça espúria avinagrada
Que anda latindo ao calcanhar da gente!

Quando a pobreza vai subindo a escada
Logo aparecem estes cães impuros
Mostrando a boca vil, anavalhada

Remexem na esterqueira dos monturos,
Mordem os cegos tristes, indigentes,
Que vão na sombra tacteando os muros

Nem heróicos, nem castos, nem valentes
Maus e cobardes; a qualquer aceno
Fogem ganindo e vão mostrando os dentes.

Se tudo é baixo e pútrido e pequeno!
Fermenta a humanidade; em vão se eleva
Por sobre nós a cruz do Nazareno

O vil proscrito descendente de Eva
Sob o jugo do mal dobra o pescoço
E vai contente a rastejar na treva.

E ele o filho do intrépido molosso
Rasga o manto dos pobres por instinto
E lambe os pés a quem lhe atira um osso.

Tudo caiu no imundo labirinto
Desta miséria, deste egoísmo atroz;
Tudo apodrece. Magro cão faminto,

És menos torpe que qualquer de nós

Guerra Junqueiro

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