Saturday, March 12, 2011

Fado de Coimbra - Canto d'alma -Velhas pedras da Sé Velha/Verdes anos

Carlos Paredes: Canção De Alcipe



Eu e meus irmãos na Real República Bota-A- Baixo (Rua de S. Salvador, Coimbra) 1968. Num tempo em que Zeca Afonso preenchia os sons das vielas da cidade. Adriano dava as primeiras notas da sua biografia musical e Fausto vindo do “Ultramar” se começava a afirmar, também, como “baladeiro” oficial da juventude estudantil contra o regime nos tempestuosos saraus do cinema Gil Vicente”. Alguém já se recorda disso?

Meu irmão mais velho era residente veterano “Merda de Doutor”. Nós éramos “bichos” e eu mais “bicho” ainda.

Mas por sobre toda esta atmosfera pairavam as notas de guitarra de Paredes. Sons de liberdade que não tardariam muito a chegar.

É por isso que Paredes preenche ainda hoje o meu imaginário juvenil e por isso o relembrei nos “posters” anteriores

Carlos Paredes - "Coimbra e o Mondego"

Carlos Paredes - Verdes Anos

Os "posters" anteriores foram-me suscitados pela manifestação de Hoje que devido à diferença de fusos horários não sei como decorreu em Lisboa e nas restantes cidades e Deolinda de que meu filho diz gostar por ser nova e hodierna interpretação do fado.

Por que é fim-de-semana tive tempo para ouvir com mais atenção a tal Deolinda e não desgostei. Mas depois fui ao “yutube” (é assim que se escreve, ou “youtube”? Não sei nada destas coisas modernas!...) e descobri os fados da Amália. Originais e bonitos. São poucos, muito poucos os fados de que gosto e por isso resolvi deixar três dos que de facto me deixam extasiado. O resto de Amália e dos fadistas de Lisboa pouco interessa (em minha opinião). Meu Irmão mais velho gostava muito do fado e cantava bem. Ia às tascas de Lisboa e perdia tempo a ouvir as histórias cantadas de “faca e alguidar” como dizia nosso Pai. Nosso Pai que tocava guitarra de Coimbra e cantava com afino as baladas da “Lusa Atenas”.

Pena é que o fado e a balada de Coimbra se tenham extinguido com Luís Góis, depois de Zeca Afonso e dos clássicos anteriores. Ouvi dizer que uma rapariga canta agora fado de Coimbra e até gravou um disco, mas creio que não teve grande sucesso. Deolinda teve. Ainda bem. Será por aqui que a música portuguesa se poderá afirmar em novas gerações originais e genuínas? Não sei, mas parece-me que há caminho a abrir e gente nova a descobrir.

Amália - Foi Deus

AMALIA RODRIGUES -"Povo Que Lavas No Rio"

Amalia Rodrigues " Solidão" 1969

Deolinda - Não Tenho Mais Razões

Wednesday, March 9, 2011

O meu cão sem trela e a liberdade

O meu cão livre na estrada


LIBERDADE

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada.
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por Dom Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca....

Fernando Pessoa, Obra Poética


Publico este poema de Luís Guimarães porque vale a pena. É uma variação (muito) provavelmente inspirada em Guerra Junqueiro – quase um plágio, do poeta, dir-se-ia, mas na verdade muito longe disso. Na verdade é o cão de Junqueiro mas do século XX (perdão XXI!..). Faz chorar tanto como o anterior, ou mais ainda. E é igual ao meu com que convivo há duas décadas e de que insisto em publicar mais uma fotografia que acima fica resguarda na penunbra dos dias.


Autor: - Luiz Guimarães

Eu tive um cão. Chamava-se Veludo:
Magro, asqueroso, revoltante, imundo,
Para dizer numa palavra tudo
Foi o mais feio cão que houve no mundo.

Recebi-o das mãos dum camarada.
Na hora da partida, o cão gemendo
Não me queria acompanhar por nada:
Enfim - mau grado seu - o vim trazendo.

O meu amigo cabisbaixo, mudo,
Olhava-o ... o sol nas ondas se abismava....
«Adeus!» - me disse,- e ao afagar Veludo
Nos olhos seus o pranto borbulhava.

«Trata-o bem. Verás como rasteiro
Te indicarás os mais sutís perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos.»

Veludo a custo habituou-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.

Nas longas noites de luar brilhante,
Febril, convulso, trêmulo, agitado
A sua cauda - caminhava errante
A luz da lua - tristemente uivando

Toussenel: Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão estes senhores.

Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
Cinco meses depois, do meu amigo
Um envelope fartamente cheio:
Era uma carta. Carta! era um artigo

Contendo a narração miuda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Plata,
Falava em rios, árvores gigantes:

Gabava o steamer que o levou; dizia
Que ia tentar inúmeras empresas:
Contava-me também que a bordo havia
Mulheres joviais - todas francesas.

Assombrava-me muito da ligeira
Moralidade que encontrou a bordo:
Citava o caso d’uma passageira...
Mil coisas mais de que me não recordo.

Finalmente, por baixo disso tudo
Em nota breve do melhor cursivo
Recomendava o pobre do Veludo
Pedindo a Deus que o conservasse vivo.

Enquanto eu lia, o cão tranquilo e atento
Me contemplava, e - creia que é verdade,
Vi, comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejarem de saudade.

Depois lambeu-me as mãos humildemente,
Estendeu-se a meus pés silencioso
Movendo a cauda, - e adormeceu contente
Farto d’um puro e satisfeito gozo.

Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre d’aquele companheiro;
Para nada Veludo me servia,
Dei-o à mulher d’um velho carvoeiro.

E respirei! «Graças a Deus! Já posso»
Dizia eu «viver neste bom mundo
Sem ter que dar diariamente um osso
A um bicho vil, a um feio cão imundo».

Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora
Um alazão inglês, de sela ou tiro,
Ou uma gata branca sismadora.

Mal respirei, porém! Quando dormia
E a negra noite amortalhava tudo
Sentí que à minha porta alguem batia:
Fui ver quem era. Abrí. Era Veludo.

Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,
Farejou toda a casa satisfeito;
E - de cansado - foi rolar dormindo
Como uma pedra, junto do meu leito.

Preguejei furioso. Era execrável
Suportar esse hóspede importuno
Que me seguia como o miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.

E resolvi-me enfim. Certo, é custoso
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um meio só: era matá-lo

Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar na solidão gemendo
Arrebentava em uivos e lamentos...
De instante em instante ia o tufão crescendo.

Chamei Veludo; ele seguia-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto
E a chuva meus cabelos fustigava.

Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vogamos;
Dava-me força o torvo pensamento:
Peguei num remo - e com furor remamos

Veludo à proa olhava-me choroso
Como o cordeiro no final momento,
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.

No largo mar ergui-o nos meus braços
E arremessei-o às ondas de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte. Era pungente.

Voltei à terra - entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.

Mas ao despir dos ombros meus o manto
Notei - oh grande dor! - haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata: - eu tinha-o unido

Contra o meu coração constantemente
E o conservava no maior recato
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.

Certo caira além no mar profundo,
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal! Ah, se Veludo

Duas vidas tivera - duas vidas
Eu arrancaria àquela besta morta
E àquelas vís entranhas corrompidas.
Nisto sentí uivar à minha porta.

Corrí, - abrí... Era Veludo! Arfava:
Estendeu-se a meus pés, - e docemente
Deixou cair da boca que espumava
A medalha suspensa da corrente.

Fôra crível, oh Deus? - Ajoelhado
Junto do cão - estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo: estava enregelado;
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto.

Nota da Escada de Jacob:

O meu cão ao contrário dos de Guimarães e Junqueiro, não é revoltado nem imundo. É cão apenas. Acorda, come e dorme em sono profundo sempre que surge ocasião. Outras vezes corre, corre e corre (quase todos os dias) e sem trela, embora esteja sempre de olho e precaução, para saber se o dono está por perto na ocasião não vá perder-se. Àh como gosto do meu cão!