Monday, January 24, 2011

Eu nas horas vagas e o meu cão filósofo


Dizem que os cães vêm e pressentem

Serão animais místicos esses cães inventados pela literatura?

O meu não vê nem pressente nada.

Acorda, de madrugada

Brinca cheira, ladra abana a cauda

Durante o dia, enquanto o dia dura

E, sem dizer nada

(mal educado, pode dizer-se) pelos padrões do dono

enrosca-se em sono

Bem profundo sono, mal termina mais uma jornada.

E fica no abandono

Do seu palácio sofá da sala de jantar

Pronto para acordar

Feliz no dia seguinte.

Às vezes cedendo, eu, ao que se diz

Ser dos cães presciência

Em intervalo de serão

Entre a leitura de um livro, olhadela à televisão

E do mundo real em momentânea ausência,

Falo com ele sobre filosofia.

Mas ele abre os grandes olhos pestanudos

Fixa-me e responde que prefere os filósofos mudos

E deixa-se de novo dormir.

Pelo que vejo, quotidianamente,

(ou seja de quando em vez)

O meu cão não vê nem pressente.

Limita-se, a ser ele

Pessoal e com próprio nome mês atrás de mes (já lá vão anos).

Reage naturalmente à sede ao frio e à fome

Como qualquer ser vivo

O meu cão

Que dorme junto à minha mão

No sofá.

Que não sente nem pressente

Mas àh...!...

Quando um ruído o desperta

Aí vai ele à descoberta

Levanta-se grave

Estica as patas.

Eu, expectante (nessas alturas), olho-o de soslaio

Entendeu alguma manifestação

metafísica de ocasião

Que me escapou?

Mas não.

Para meu cão

Não há metafísica, nem sentimentos tolos como depressão

Saudade, ou mágoa

O meu cão

levantou-se,

Espreguiçou-se,

Esgueirou-se pela sala

E foi apenas beber água.

Que filósofo colossal

É sempre nessa repetida ocasião

O meu cão

Que não sente nem pressente

Aliás tem cataratas e já ouve mal

E mal sente

A gente

vizinha que se extravasa

Em ruídos quotidianos.

Interessa-me lá o que se passa fora de casa!

Já levo tantos anos

De te guardar

Meu dono!

Já bebi a minha água

Deixa-te de imaginar

Quero regressar ao sono

É fora de horas

Vê bem.

Tudo dorme

Apaga a luz e vai dormir também.

J. Guedes

25 Janeiro 2011

Saturday, January 15, 2011


E agora apenas uma fotografia de Macau. A torre e o pôr do Sol

O meu cão e Guerra Junqueiro

Eu não sou o pintor diletante de Junqueiro. Mas acho que primeiro está de quem se gosta muito. Os pais, os filhos os netos, os avós. Todos são todos nós.
Mas o meu "Fiel" dos versos de Junqueiro já está velhinho e por isso está primeiro.
Gosto tanto dele! (é preciso exclamar). E ele, fiel, redigiria naturalmente o poema que o poeta redigiu se soubesse falar. Mas antes de tudo e mais do que tudo acho que é preciso amar.
Junqueiro soube sublimar, neste contexto, o panteão de Deus.
Aqui o deixo para quem queira avaliar.
O génio de um poeta ímpar e a foto do meu cão (igualmente ímpar), "que faz "hão, hão" e é bom amigo como os que são".
O meu cão


FIEL
(Um poema de Guerra Junqueiro. Conto poético. Reflexão).

Na luz do seu olhar tão lânguido, tão doce,
Havia o que quer que fosse
D’um íntimo desgosto :
Era um cão ordinário, um pobre cão vadio
Que não tinha coleira e não pagava imposto.
Acostumado ao vento e acostumado ao frio,
Percorria de noite os bairros da miséria
À busca dum jantar.
E ao ver surgir da lua a palidez etérea,
O velho cão uivava uma canção funérea,
Triste como a tristeza oceânica do mar.
Quando a chuva era grande e o frio inclemente,
Ele ia-se abrigar às vezes nos portais ;
E mandando-o partir, partia humildemente,
Com a resignação nos olhos virginais.
Era tranquilo e bom como as pombinhas mansas ;
Nunca ladrou dum pobre à capa esfarrapada :
E, como não mordia as tímidas crianças,
As crianças então corriam-no a pedrada.

Uma vez casualmente, um mísero pintor
Um boêmio, um sonhador,
Encontrara na rua o solitário cão ;
O artista era uma alma heróica e desgraçada,
Vivendo numa escura e pobre água furtada,
Onde sobrava o gênio e onde faltava o pão.
Era desses que têm o rubro amor da glória,
O grande amor fatal,
Que umas vezes conduz às pompas da vitória,
E que outras vezes leva ao quarto do hospital.

E ao ver por sobre o lodo o magro cão plebeu,
Disse-lhe : - "O teu destino é quase igual ao meu :
Eu sou como tu és, um proletário roto,
Sem família, sem mãe, sem casa, sem abrigo ;
E quem sabe se em ti, ó velho cão de esgoto,
Eu não irei achar o meu primeiro amigo !..."

No céu azul brilhava a lua etérea e calma ;
E do rafeiro vil no misterioso olhar
Via-se o desespero e ânsia d’uma alma,
Que está encarcerada, e sem poder falar.
O artista soube ler naquele olhar em brasa
A eloqüente mudez dum grande coração ;
E disse-lhe : - "Fiel, partamos para casa :
Tu és o meu amigo, e eu sou o teu irmão. -"

E viveram depois assim por longos anos,
Companheiros leais, heróicos puritanos,
Dividindo igualmente as privações e as dores.
Quando o artista infeliz, exausto e miserável,
Sentia esmorecer o génio inquebrantável
Dos fortes lutadores ;
Quando até lhe acudiu às vezes a lembrança
Partir com uma bala a derradeira esp’rança,
Pôr um ponto final no seu destino atroz ;
Nesse instante do cão os olhos bons, serenos,
Murmura-lhe : - Eu sofro, e a gente sofre menos,
Quando se vê sofrer também alguém por nós.

Mas um dia a Fortuna, a deusa milionária,
Entrou-lhe pelo quarto, e disse alegremente :
"Um génio como tu, vivendo como um pária,
Agrilhoado da fome à lúgubre corrente !
Eu devia fazer-te há muito esta surpresa,
Eu devia ter vindo aqui p’ra te buscar ;
Mas moravas tão alto ! E digo-o com franqueza
Custava-me subir até ao sexto andar.
Acompanha-me ; a glória há de ajoelhar-te aos pés !..."
E foi ; e ao outro dia as bocas das Frinés
Abriram para ele um riso encantador ;
A glória deslumbrante iluminou-lhe a vida
Como bela alvorada esplêndida, nascida
A toques de clarim e a rufos de tambor !

Era feliz. O cão
Dormia na alcatifa à borda do seu leito,
E logo de manhã vinha beijar-lhe a mão,
Ganindo com um ar alegre e satisfeito.
Mas aí ! O dono ingrato, o ingrato companheiro,
Mergulhado em paixões, em gozos, em delícias,
Já pouco tolerava as festivas carícias
Do seu leal rafeiro.

Passou-se mais um tempo ; o cão, o desgraçado,
Já velho e no abandono,
Muitas vezes se viu batido e castigado
Pela simples razão de acompanhar seu dono.
Como andava nojento e lhe caíra o pelo,
Por fim o dono até sentia nojo ao vê-lo,
E mandava fechar-lhe a porta do salão.
Meteram-no depois num frio quarto escuro,
E davam-lhe a jantar um osso branco e duro,
Cuja carne servira aos dentes d’outro cão.

E ele era como um roto, ignóbil assassino,
Condenado à enxovia, aos ferros, às galés :
Se se punha a ganir, chorando o seu destino,
Os criados brutais davam-lhe pontapés.
Corroera-lhe o corpo a negra lepra infame.
Quando exibia ao sol as podridões obscenas,
Poisava-lhe no dorso o causticante enxame
Das moscas das gangrenas.

Até que um dia, enfim, sentindo-se morrer,
Disse "Não morrerei ainda sem o ver ;
A seus pés quero dar meu último gemido..."
Meteu-se-lhe no quarto, assim como um bandido.
E o artista ao entrar viu o rafeiro imundo,
E bradou com violência :
"Ainda por aqui o sórdido animal !
É preciso acabar com tanta impertinência,
Que esta besta está podre, e vai cheirando mal !"
E, pousando-lhe a mão cariciosamente,
Disse-lhe com um ar de muito bom amigo :
"Ó meu pobre Fiel, tão velho e tão doente,
Ainda que te custe anda daí comigo."

E partiram os dois. Tudo estava deserto.
A noite era sombria ; o cais ficava perto ;
E o velho condenado, o pobre lazarento,
Cheio de imensas mágoas
Sentiu junto de si um pressentimento
O fundo soluçar monótono das águas.

Compreendeu enfim! Tinha chegado à beira
Da corrente. E o pintor,
Agarrando uma pedra atou-lh’a na coleira,
Friamente cantando uma canção d’amor.

E o rafeiro sublime, impassível, sereno,
Lançava o grande olhar às negras trevas mudas
Com aquela amargura ideal do Nazareno
Recebendo na face o ósculo de Judas.
Dizia para si : "È o mesmo, pouco importa.
Cumprir o seu desejo é esse o meu dever :
Foi ele que me abriu um dia a sua porta :
Morrerei, se lhe dou com isso algum prazer."

Depois, subitamente
O artista arremessou o cão na água fria.
E ao dar-lhe o pontapé caiu-lhe na corrente
O gorro que trazia
Era uma saudosa, adorada lembrança
Outrora concedida
Pela mais caprichosa e mais gentil criança,
Que amara, como se ama uma só vez na vida.

E ao recolher à casa ele exclamava irado :
"E por causa do cão perdi o meu tesouro !
Andava bem melhor se o tinha envenenado !
Maldito seja o cão! Dava montanhas d’oiro,
Dava a riqueza, a glória, a existência, o futuro,
Para tornar a ver o precioso objecto,
Doce recordação daquele amor tão puro."
E deitou-se nervoso, alucinado, inquieto.
Não podia dormir.
Até nascer da manhã o vivido clarão,
Sentiu bater à porta ! Ergueu-se e foi abrir.
Recuou cheio de espanto : era o Fiel, o cão,
Que voltava arquejante, exânime, encharcado,
A tremer e a uivar no último estertor,
Caindo-lhe da boca, ao tombar fulminado,
O gorro do pintor !