Dizem que os cães vêm e pressentem
Serão animais místicos esses cães inventados pela literatura?
O meu não vê nem pressente nada.
Acorda, de madrugada
Brinca cheira, ladra abana a cauda
Durante o dia, enquanto o dia dura
E, sem dizer nada
(mal educado, pode dizer-se) pelos padrões do dono
enrosca-se em sono
Bem profundo sono, mal termina mais uma jornada.
E fica no abandono
Do seu palácio sofá da sala de jantar
Pronto para acordar
Feliz no dia seguinte.
Às vezes cedendo, eu, ao que se diz
Ser dos cães presciência
Em intervalo de serão
Entre a leitura de um livro, olhadela à televisão
E do mundo real em momentânea ausência,
Falo com ele sobre filosofia.
Mas ele abre os grandes olhos pestanudos
Fixa-me e responde que prefere os filósofos mudos
E deixa-se de novo dormir.
Pelo que vejo, quotidianamente,
(ou seja de quando em vez)
O meu cão não vê nem pressente.
Limita-se, a ser ele
Pessoal e com próprio nome mês atrás de mes (já lá vão anos).
Reage naturalmente à sede ao frio e à fome
Como qualquer ser vivo
O meu cão
Que dorme junto à minha mão
No sofá.
Que não sente nem pressente
Mas àh...!...
Quando um ruído o desperta
Aí vai ele à descoberta
Levanta-se grave
Estica as patas.
Eu, expectante (nessas alturas), olho-o de soslaio
Entendeu alguma manifestação
metafísica de ocasião
Que me escapou?
Mas não.
Para meu cão
Não há metafísica, nem sentimentos tolos como depressão
Saudade, ou mágoa
O meu cão
levantou-se,
Espreguiçou-se,
Esgueirou-se pela sala
E foi apenas beber água.
Que filósofo colossal
É sempre nessa repetida ocasião
O meu cão
Que não sente nem pressente
Aliás tem cataratas e já ouve mal
E mal sente
A gente
vizinha que se extravasa
Em ruídos quotidianos.
Interessa-me lá o que se passa fora de casa!
Já levo tantos anos
De te guardar
Meu dono!
Já bebi a minha água
Deixa-te de imaginar
Quero regressar ao sono
É fora de horas
Vê bem.
Tudo dorme
Apaga a luz e vai dormir também.
J. Guedes
25 Janeiro 2011